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A Última Travessia de D. João VI e o Lento Eco de sua Morte no Brasil

  • Foto do escritor: Sidney Klock
    Sidney Klock
  • 28 de nov.
  • 4 min de leitura

Em 1826, uma notícia navegou do outro lado do oceano com o peso de um império: o falecimento de D. João VI, rei de Portugal, do Brasil e Algarves, ocorrido em 10 de março. No entanto, essa morte não foi imediatamente reconhecida no Brasil, o que revela não apenas um atraso de comunicações típico da época, mas também os reflexos profundos de um luto político, dinástico e identitário.


O Brasil, ainda nos primeiros passos de sua vida como nação independente, precisava decidir o que fazer com a memória de um rei que não era mais seu, mas que ainda habitava seus palácios, suas moedas, seus símbolos.


Foi apenas em abril de 1826 que o Império brasileiro reconheceu oficialmente a morte daquele que, de certa forma, ainda pairava sobre a coroa de seu filho, Dom Pedro I. Mas a morte de um rei nunca é apenas o fim de um corpo: é também o fim de uma era, de um estilo de poder, de uma maneira de existir no mundo.


Imagem em estilo neoclássico representando D. João VI ainda vivo, sentado em um trono ornamentado, com expressão introspectiva e melancólica. Veste manto azul de veludo com bordados dourados, túnica branca e faixa vermelha. À sua esquerda, repousa uma coroa real; ao fundo, cortinas vermelhas e uma decoração de época com elementos coloniais portugueses. A iluminação suave de velas cria uma atmosfera solene e simbólica, evocando poder, transição e memória histórica.
Arte: SK

Entre o Atlântico e os Abismos do Tempo


Poucos monarcas viveram uma vida tão moldada por exílios, improvisos e paradoxos quanto D. João VI. Subiu ao poder num momento de profunda instabilidade: as guerras napoleônicas, a fuga da Corte para o Brasil (1808), a transformação do Rio de Janeiro em capital do império e, enfim, o retorno forçado a Lisboa em 1821.


D. João VI morreu em 1826, mas uma parte sua havia morrido anos antes, ao ver o Brasil declarar-se independente. E mesmo assim, seu legado permanecia ambíguo: ele fora o rei que trouxe o império para a América, mas também aquele que deixou que seu filho o rompesse.


Ao morrer, D. João VI deixou um império dividido e um filho dividido entre dois tronos.


A Morte Chega ao Brasil: Ecos do Velho Mundo


Quando a notícia de sua morte finalmente chegou ao Brasil, em meados de abril de 1826, o governo de Dom Pedro I decretou luto oficial. Mas esse reconhecimento tardio da morte não era meramente logístico: ele refletia a delicada posição política do Brasil.


Dom Pedro I era simultaneamente Imperador do Brasil e, tecnicamente, herdeiro do trono português. Com a morte de seu pai, ele se tornou Dom Pedro IV de Portugal, por poucos meses, até abdicar em favor de sua filha Maria da Glória.


Este momento dramático encapsula um dilema que ressoa até hoje:


“Como separar o coração do império que foi um só por tantos séculos?”

O luto pelo rei morto era também o luto por uma unidade perdida, a utopia do império transatlântico.


Rituais, Luto e Símbolos: Como o Brasil Honrou um Rei


Apesar de o Brasil já ser um império autônomo, o falecimento de D. João VI foi tratado com solenidade:


  • O governo imperial decretou três dias de luto oficial, com suspensão de festividades públicas.

  • As igrejas realizaram missas de corpo presente simbólicas, com altares enlutados e sinos dobrando.

  • Em jornais como O Espelho e Diário do Rio de Janeiro, publicaram-se obituários que oscilavam entre a formalidade diplomática e uma memória ainda afetiva do monarca.


Dom Pedro I ordenou também que se enviasse um embaixador ao Reino de Portugal, não apenas para oficializar sua abdicação do trono português, mas para reforçar a postura de respeito à figura paterna e ao laço cultural com a antiga metrópole.


O Peso da Coroa e a Sombra do Pai


A morte de D. João VI fez com que Dom Pedro I assumisse, mesmo que brevemente, o trono português. A efemeridade desse reinado, de março a maio de 1826, reflete o tumulto de um monarca que vivia entre dois mundos: o velho império europeu e a nova monarquia tropical.


Esse breve reinado criou uma situação inédita: um imperador brasileiro era, ao mesmo tempo, rei de Portugal. Um rei que precisava abdicar de si mesmo para que a independência do Brasil não fosse manchada por contradições políticas.

Essa passagem é uma das mais densas e poéticas da história luso-brasileira:


"Dom Pedro foi rei e filho, imperador e órfão, tudo ao mesmo tempo."

A Morte de D. João VI e o Início do Século XIX Brasileiro


A oficialização da morte de D. João VI no Brasil em abril de 1826 é um ponto de virada simbólico. Não foi apenas a despedida de um rei, mas o momento em que o Brasil começou a deixar para trás os últimos traços institucionais do Antigo Regime.

Era o fim de uma transição longa, marcada por dilemas como:


  • Como ser independente e, ainda assim, monárquico?

  • Como cortar os laços sem apagar as memórias?

  • Como honrar o pai sem trair o futuro?


Curiosidade


Você sabia? O coração de D. João VI foi separado de seu corpo e permanece até hoje guardado na Igreja da Lapa, no Porto, em Portugal. Esta prática era comum entre reis, como forma simbólica de dividir suas fidelidades, o corpo enterrado em um lugar, o coração em outro, como se o rei nunca pudesse pertencer a um só reino.


Referências


  • BARMAN, Roderick. Citizen Emperor: Pedro II and the Making of Brazil, 1825–1891. Stanford University Press, 1999.

  • CALMON, Pedro. História de D. João VI. Rio de Janeiro: José Olympio, 1950.

  • SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador. Companhia das Letras, 1998.

  • JANOTTI, Maria de Lourdes. O Brasil no Tempo de D. João VI. São Paulo: Atual, 1991.

  • Arquivo Nacional do Brasil – Documentos históricos sobre o Primeiro Reinado

  • Biblioteca Nacional Digital do Brasil – Jornais de 1826 (Diário do Rio de Janeiro, O Espelho)

 
 
 

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