Anita Garibaldi: chamas de coragem que atravessam dois mundos
- Sidney Klock
- 28 de nov.
- 4 min de leitura
Em 1839, quando as velas da escuna Rio Pardo rasgaram as águas de Laguna, Santa Catarina, o destino reencontrou sua própria centelha: Ana Maria de Jesus Ribeiro. Naquele instante a moça da fonte — que Giuseppe Garibaldi, incapaz de pronunciar “Aninha”, renomearia Anita — tornou-se centelha viva da Revolução Farroupilha. Nascia ali uma lenda em permanente combustão, capaz de incendiar continentes com ideias de república, emancipação e igualdade.

Forjas de uma heroína
Infância e juventude
Filha de tropeiro açoriano e mãe lavradora, Anita cresceu entre caniços e marés do sul catarinense, cenário de pobreza mas também de independência agreste. A morte prematura do pai obrigou-a a pastorear irmãos e sonhos, ao passo que a terra natal se agitava com rebeliões provincianas.
Revolução Farroupilha e República Juliana
Quando as forças farrapas tomaram Laguna, proclamando a efêmera República Juliana (22 jul 1839), Anita empunhou carabina, munição e coragem. Combates navais em Imbituba, curvas de pólvora no Rio Pelotas, fuga épica de Curitibanos – grávida, atravessando o Rio Canoas a nado — forjaram sua fama de amazona indomável.
Exílio platino
Em 1841, já mãe do pequeno Menotti, marchou 800 km até Montevidéu, onde a Legião Italiana de Garibaldi defenderia o Uruguai contra forças do caudilho Oribe. Anita, enfermeira de campanha e estrategista improvisada, cuidava de feridos e transportava suprimentos entre canhoneios no Prata.
Risorgimento italiano
Atravessou o Atlântico em 1847 para juntar-se ao marido nas guerras de unificação. Grávida novamente, corta os cabelos, veste farda e luta na defesa da República Romana (1849). A retirada de Roma sela sua via-crúcis final: febre tifoide, pântanos de Ravenna e morte aos 27 anos, com seis meses de gestação — corpo enterrado às pressas e transladado décadas depois ao Janículo, Roma, onde repousa sob estátua equestre.
Retratos de coragem
Pintura e escultura
O óleo sobre tela “Retrato de Anita Garibaldi” (1919), acervo do Museu de Arte de Santa Catarina, consagra-a em pose altiva, lenço vermelho flamejante como brasão republicano.
Monumentos em Porto Alegre (Filadelfo Simi, 1912) e no Janículo romano exibem dupla iconografia: Anita ajoelhada junto ao canhão, ou cavalgando com o filho nos braços — síntese de maternidade e guerra.
Coleção GaribaldinaO arquiteto Wolfgang L. Rau reuniu 19.113 itens — do mastro da escuna Seival à terra da sepultura em Ravenna — hoje patrimônio catarinense, prova de como objetos podem “incendiar” a imaginação pública.
Exposições contemporâneasA mostra “200 Anos de Anita Garibaldi: Vida, Coragem e Paixão”, no Museu Histórico de Santa Catarina (2021-2022), reuniu obras do MASC e do Museu Nacional do Mar, apresentando leitura crítica sobre apropriações do mito.
Espada, palavra e exemplo
Militar – Tática de guerrilha no sul brasileiro, logística na Guerra Grande uruguaia, resistência em Roma. Sua presença feminina rompe padrões castrenses do século XIX.
Republicanismo – Ícone para federalistas brasileiros, carbonários italianos e senado brasileiro, que a homenageou no bicentenário (2021) como arquétipo de cidadania e liberdade.
Emancipação feminina – Anita adensou debates sobre participação política das mulheres; bibliografias da Biblioteca Pública de SC listam 654 registros jornalísticos só entre 1839-1949, sinal de recepção intensa e crescente.
Patrimônio imaterial – Rezadeiras de Laguna entoam cantigas lembrando a fuga a cavalo; grupos tradicionalistas encenam a “Tomada de Laguna” anualmente, convertendo história em ritual vivo.
Ecos que não cessam
Museus e casas-memória
Casa de Anita (Laguna, 1711) passa por restauração sob tutela do IPHAN, preservando ambiente de sua juventude.
Museu Histórico Anita Garibaldi, instalado no antigo Paço do Conselho (1735), conserva armas farroupilhas, urna com terra de Ravenna e acervo indígena regional — diálogo entre lutas libertárias e culturas originárias.
Educação e pesquisaTeses da UNESP e UFPel reavaliam mito versus realidade, alertando para filtros de gênero na historiografia. A coleção de PDFs disponibilizada pelo Arquivo Público catarinense digitaliza cartas, atas e certidões do século XIX.
Turismo de memóriaRotas ciclísticas “Caminhos de Anita” unem Laguna, Lages e Curitibanos, atraindo viajantes a cenários de batalhas e fugas lendárias; placas QR-code oferecem acesso aos painéis históricos elaborados pela Fundação Catarinense de Cultura.
Política e representatividadeSessões especiais no Senado e assembleias estaduais evocam Anita para discutir direitos das mulheres e pertencimento republicano — demonstrando que, 176 anos após sua morte, ela continua interlocutora em debates de igualdade.
Curiosidade
Na penumbra do depósito climatizado, repousa um pedaço do mastro do Seival, madeira ressequida que um dia rasgou o Atlântico sob balas imperiais. Diz-se que, nas madrugadas de vento, o fragmento range como vela tensa, como se ainda buscasse Laguna, Ravenna, qualquer porto onde Anita cavalgue sobre ondas invisíveis. Talvez seja apenas rumor de madeiras antigas — ou quem sabe o eco daquelas palavras sussurradas no primeiro encontro: “Tu devi essere mia!”.
Referências
Elibio Jr., A. “Coleção Garibaldina: intermediações e construções em um patrimônio catarinense”. Cadernos NAUI, v.5, n.9, 2016.
Marangoni, G. “Outros aspectos da República Juliana Laguna/SC”. UFSC, 2012.
Rau, W. L. Anita Garibaldi coberta por histórias. UNESP, 2010.
UFPel. “Anita Garibaldi: mito e realidade histórica”. Pergamum Digital, 2004.
Biblioteca Pública de SC. Levantamento Bibliográfico Anita Garibaldi (QR-Code catálogo), 2021.
Museu Histórico Anita Garibaldi, Laguna – acervo e histórico institucional.
IPHAN. “Restauração da Casa de Anita Garibaldi” – relatório PAC Cidades Históricas, 2024.
Fundação Catarinense de Cultura. “Exposição 200 Anos de Anita Garibaldi: Vida, Coragem e Paixão”, 2021-2022.
Senado Federal. Sessão especial do bicentenário de nascimento, 30 ago 2021.
Arquivo Público do Estado de Santa Catarina. Registro de autoridade “Anita Garibaldi” e acervos digitalizados.



Comentários