Araucária: O Símbolo Cultural, Espiritual e Ecológico do Sul do Brasil
- Sidney Klock
- 28 de nov.
- 4 min de leitura
Sob os galhos de uma memória milenar
Há árvores que são apenas flora — e há árvores que são memória, símbolo, presença sagrada. No planalto sul-brasileiro, uma silhueta distinta recorta o céu com seus braços simétricos em forma de candelabro. A araucária, ou Araucaria angustifolia, é mais que vegetação: é um relicário vivo da história, da cultura e da espiritualidade do Sul do Brasil. Uma testemunha de eras geológicas e também de danças, rituais, mitos e canções.
Neste artigo, caminharemos sob suas copas centenárias para explorar a dimensão filosófica, ancestral e simbólica dessa árvore extraordinária — e por que sua preservação é, ao mesmo tempo, um ato ecológico e um gesto de respeito à alma de um povo.

A árvore sagrada: Araucária na cosmologia indígena
A relação entre a araucária e os povos originários do Sul é profunda e espiritual. Povos Proto-Jê, como os Kaingang e Xokleng, cultivam há mais de 4 mil anos uma cosmologia onde o pinheiro-do-paraná é muito mais que recurso: é entidade viva, classificada como ser Kamé, metade divina da criação.
Pinturas rupestres descobertas em 2021, com representações explícitas da araucária e figuras humanas, evidenciam que essa ligação simbólica é milenar. O Ritual do Kiki, ainda realizado pelos Kaingang, usa o tronco da araucária para preparar uma bebida sagrada, conectando vivos e mortos, passado e presente.
O pinhão, fruto dessa árvore, estruturava não apenas a alimentação, mas todo o calendário ritual. Era pisado, tostado, cozido, compartilhado — alimento e oferenda, memória e celebração.
De símbolo ancestral a emblema cultural regional
A araucária se enraizou também na identidade sulista não indígena. Topônimos como “Curitiba” (kur yt yba – “muito pinheiro” em guarani) revelam sua onipresença. Figuras como João Turin, com sua escultura "Homem-Pinheiro", forjaram um imaginário onde natureza e cultura se fundem numa só entidade.
Nos séculos XX e XXI, sua imagem migrou para brasões, bandeiras e narrativas literárias. Dalton Trevisan, ícone da literatura curitibana, colocou a araucária no centro cenográfico de suas histórias — uma presença que abençoa e vigia.
A devastação do ciclo madeireiro, que destruiu 97% das florestas originais, gerou um sentimento coletivo de luto ecológico. A árvore que antes era abundância tornou-se ausência sentida — e por isso, símbolo de resistência e memória.
A árvore nas artes, na música e no folclore
Na música gaúcha e paranaense, a araucária aparece como símbolo de pertença. Grupos como Os Serranos ou artistas como Teixeirinha e Luiz Marenco cantam sua imagem como metáfora da vida no campo, da tradição, do que persiste.
O folclore eternizou sua origem mítica com a Lenda da Gralha-Azul, em que o pinhão é semente de amor transformado em árvore. E as Festas do Pinhão — especialmente a de Lages (SC) — mantêm viva essa relação entre celebração, alimento e natureza.
Na arte, Pedro Weingärtner e Percy Lau imortalizaram sua imagem. E hoje, artistas contemporâneos a usam como símbolo de denúncia ecológica e afirmação identitária.
Filosofia, espiritualidade e simbolismo universal
Fóssil vivo de 200 milhões de anos, a araucária carrega o peso filosófico daquilo que resiste ao tempo. Ela é um “axis mundi” — eixo do mundo — tal como o Baobá africano ou o Yggdrasil nórdico, conectando céu, terra e o mundo dos mortos.
Na psicologia junguiana, sua copa em guarda-chuva é arquétipo materno. Sua verticalidade é ponte simbólica entre o imanente e o transcendente. Como diz o professor Paulo de Oliveira (USP), a araucária manifesta “resistência ontológica” diante de mudanças climáticas e civilizatórias.
Preservá-la, portanto, não é apenas proteger uma espécie. É cuidar de uma estrutura simbólica que sustenta o imaginário e a identidade de milhões.
Rituais, festivais e resistência contemporânea
O Dia Nacional da Araucária, celebrado em 24 de junho, integra colheita, solstício de inverno e Festa de São João — uma tríade que resgata o tempo do sagrado e da terra. Nesse dia, universidades e prefeituras distribuem milhares de mudas. É a árvore renascendo.
Projetos como o “Conservador das Araucárias” e iniciativas da Apremavi, SPVS e Fundação SOS Mata Atlântica buscam restaurar ecossistemas, educar comunidades e promover o manejo sustentável. A Lei 20.223/2020, do Paraná, permite cultivo comercial controlado com responsabilidade ambiental.
Nas escolas, cartilhas, jogos e ações coletivas reencenam o ciclo da araucária como ponte entre gerações.
A eternidade que cresce em silêncio
A araucária não grita. Ela vigia. Ela espera. Presente em pinturas rupestres e na arte contemporânea, na canção nativista e nos rituais sagrados, essa árvore se tornou um símbolo total — espiritual, cultural, filosófico e ecológico.
Preservá-la é preservar a memória de um território e de seus povos. É afirmar que há futuro quando cuidamos do que é antigo. E que mesmo árvores podem ser oráculos.
Curiosidade
Você sabia que a copa da araucária inspirou a arquitetura de catedrais góticas na Europa, segundo alguns estudiosos do simbolismo vegetal? A estrutura “em guarda-chuva” sugere um templo natural que abriga — como se cada árvore fosse, por si só, uma catedral viva no coração do Sul do Brasil.
Referências
Universidade Federal do Paraná (UFPR): ufpr.br
Apremavi – Associação de Preservação do Meio Ambiente: apremavi.org.br
Scielo – Artigos acadêmicos sobre o ritual Kaingang: scielo.br
ResearchGate – Estudos etnográficos e ambientais
Jornal da USP – Matérias sobre conservação e simbolismo da araucária
Mongabay – Reportagens sobre devastação e preservação da araucária
Museu de Arte Contemporânea do Paraná (MAC-PR)
Museu de Arte de Santa Catarina (MASC)
Instituto do Meio Ambiente de SC
Fundação SOS Mata Atlântica e Projeto Conexão Araucária



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