As Origens do Futebol no Brasil, Uma Viagem ao Passado do “Vovô” do Esporte Nacional
- Sidney Klock
- 19 de jul.
- 4 min de leitura
Em meio à névoa do tempo e ao sopro de modernidade que atravessava o Brasil no alvorecer do século XX, nasceu um gesto quase silencioso, mas profundamente simbólico: a fundação do Sport Club Rio Grande, em 19 de julho de 1900. Não foi apenas um clube. Foi o primeiro passo de um ritual coletivo que, ao longo das décadas, se tornaria uma das maiores paixões do país.
Neste artigo, vamos além dos gols e das glórias: investigamos as raízes históricas, artísticas e culturais do futebol no Brasil, tendo como fio condutor o clube que deu origem à celebração do Dia Nacional do Futebol. O que havia naqueles primeiros chutes que ecoa até hoje nos corações brasileiros?

Da Antiguidade à Belle Époque
O impulso ancestral do jogo
Muito antes de Miller ou Nobiling pisarem solo brasileiro com bolas nas malas, o futebol já era, de certo modo, uma presença arquetípica na humanidade. Na China de 2.600 a.C., guerreiros jogavam "Tsü Tsü" com cabeças de inimigos, num ritual mágico que evocava coragem e liderança. No Japão, o "kemari" era mais que jogo: era meditação em movimento.
Na Grécia e em Roma, soldados e nobres disputavam partidas de “epísquiro” e “harpastum”, jogos que misturavam estratégia, força e celebração. Já na Idade Média, o futebol europeu transformou-se em um caos festivo e violento, o que levou reis a bani-lo, como o inglês Eduardo II.
O renascimento das regras
É no século XIX, na Inglaterra industrial, que o futebol assume sua forma moderna. A fundação da Football Association em 1863 sistematizou as regras do jogo e o separou do rugby. O esporte, agora civilizado, tornou-se um símbolo da nova era urbana: recreação da classe trabalhadora e identidade comunitária nas cidades cinzentas da revolução industrial.
A travessia atlântica
Quando Charles Miller organizou, em 1895, a primeira partida oficial em São Paulo, já trazia nas chuteiras mais que bolas e regras: trazia um tempo novo. No entanto, o Rio Grande do Sul vivia seu próprio movimento. A cidade portuária de Rio Grande, com forte presença de imigrantes europeus, já pulsava com a energia cosmopolita que possibilitaria a fundação do Sport Club Rio Grande cinco anos depois.
Quando o futebol se torna poesia
Drummond, Nelson e a alma do jogo
Poucos países conseguiram transformar o futebol em uma linguagem poética como o Brasil. Carlos Drummond de Andrade escreveu:
"Futebol se joga na alma."
Essa alma encontrou eco na pena de Nelson Rodrigues, que elevou o futebol à categoria de tragédia grega moderna. Suas crônicas não apenas narravam jogos: criavam mitologias. Foi dele a expressão “pátria de chuteiras”, que sintetiza a força identitária do esporte no Brasil.
Futebol-arte: Entre Freyre e Pasolini
O sociólogo Gilberto Freyre enxergava no estilo brasileiro de jogar — mágico, criativo, improvisado — um traço da nossa herança cultural mestiça. Pier Paolo Pasolini, cineasta e ensaísta italiano, chamou esse estilo de “calcio di poesia”, em contraste com o futebol europeu, mais racional, que ele chamava de “prosaico”.
O “Vovô” do futebol brasileiro
Um marco fundacional
Fundado em 19 de julho de 1900 por um grupo de imigrantes europeus, o Sport Club Rio Grande é reconhecido como o clube mais antigo em atividade no Brasil. Suas cores — verde, vermelho e amarelo — homenageiam a bandeira do Rio Grande do Sul, simbolizando a fusão entre o universal e o regional, entre Europa e Pampa.
Um clube portuário, um Brasil em formação
A cidade de Rio Grande, banhada por mares e cruzada por ventos, foi um ponto de entrada não só de navios, mas de ideias. O porto recebia comerciantes, trabalhadores e também a cultura esportiva europeia. Em poucas décadas, surgiram ali mais de 40 agremiações futebolísticas, demonstrando que o futebol não era apenas elite: era tecido social.
Um palco para múltiplas identidades
No Sport Club Rio Grande, como em outros clubes da época, conviviam diferentes etnias, classes e histórias. O futebol funcionava como meio de inserção e expressão, um campo simbólico onde se reconfiguravam as relações sociais. Ali já se prenunciava o Brasil plural e contraditório que floresceria no século XX.
O futebol como identidade nacional
Primeira República, modernidade e urbanização
Entre 1889 e 1930, o Brasil vivia as turbulências da Primeira República. Modernização urbana, chegada do operariado, reformas culturais. O futebol encaixou-se perfeitamente nesse contexto: era um rito urbano, uma pedagogia do corpo, uma linguagem comum.
Francisco Carregal: o primeiro negro em campo
A inserção de Francisco Carregal no Bangu Atlético Clube (1905–1913) marca um momento decisivo na história social do futebol. Num país recém-saído da escravidão, Carregal não apenas jogou: transgrediu. Abriu caminhos para uma mestiçagem simbólica que tornaria o futebol brasileiro inconfundível.
A arte que continua no presente
Exposições como The World’s Game: Futebol e Arte Contemporânea revelam como o futebol continua a ser inspiração artística. O jogador, hoje, é atleta e performer; o estádio, palco e templo; a bola, pincel que desenha danças coreografadas no gramado.
Curiosidade
Pouco se fala, mas o primeiro poema sobre futebol publicado no Brasil data de 1916: Match de Foot-Ball, de Apparício Torelly. Ironizando a confusão e a vibração do jogo, já intuía que o futebol não era apenas esporte, mas espelho de uma sociedade em transformação.
E você sabia? O grito da torcida, a bola que rola, os heróis improváveis de cada partida — tudo isso nasceu, simbolicamente, naquele 19 de julho de 1900. O campo era outro, mas o sonho, o mesmo: transformar o jogo em gesto eterno.
Referências
Museu do Futebol – São Paulo
Biblioteca Nacional Digital
FREYRE, Gilberto. O Negro no Futebol Brasileiro.
RODRIGUES, Nelson. A Pátria de Chuteiras.
PASOLINI, Pier Paolo. Calcio e poesia.
DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Poesia Completa.
Acervo Histórico do Sport Club Rio Grande
GIGLIO, Sérgio Settani. Futebol e Sociedade.
Exposição “The World’s Game”, Museu de Arte Contemporânea de Miami
Revista História Viva – edições sobre futebol
Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul



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