Cacau: a semente que sustentou deuses, impérios e cadeias globais de exploração
- Sidney Klock
- 26 de mar.
- 3 min de leitura
No dia 26 de março, celebra-se o Dia do Cacau, uma data muitas vezes associada ao prazer do chocolate, mas que encobre séculos de significados religiosos, disputas imperiais e contradições econômicas. Muito antes de sua transformação em iguaria europeia, o cacau era o centro de universos simbólicos inteiros. Para os maias e astecas, suas sementes, conhecidas como cacahuatl, eram mais que alimento: eram veículo de ligação com os deuses, empregadas em cerimônias funerárias e banquetes reais, além de servirem como moeda corrente. A bebida espessa feita com cacau — sem açúcar, com pimenta e especiarias — era consumida por sacerdotes e elites. A cosmologia mesoamericana narra que o cacau nasceu do sangue derramado de divindades sacrificadas, fazendo dele não um produto, mas um elo entre mundos.

O século XVI marca uma virada decisiva na trajetória do cacau. A invasão europeia das Américas não apenas devastou civilizações originárias, mas também desarticulou ecossistemas sociais e produtivos locais. O cacau, levado à Europa pelos espanhóis, rapidamente foi absorvido pelas cortes como um símbolo exótico de poder e sofisticação. No entanto, sua ascensão nos mercados europeus exigiu novas frentes produtivas em territórios tropicais. Surgem então as plantações monocultoras nas colônias — do México à Guiné, da Bahia à Ilha de São Tomé — mantidas pela violência do trabalho escravizado. A semente que um dia circulou em templos cerimoniais, agora passava por engenhos e navios negreiros. O cacau tornava-se uma engrenagem no maquinário colonial global, consolidando o que o historiador Sidney Mintz chamou de “doce pilar do Império”.
No século XIX, o cacau passa a ser industrializado em larga escala, principalmente na Inglaterra, Suíça e França. O chocolate, agora açucarado, moldado e empacotado, deixa os salões aristocráticos e passa a integrar o cotidiano das classes médias urbanas. Marcas como Cadbury, Nestlé e Hershey transformam o produto em símbolo do capitalismo industrial. Mas essa democratização escondeu as continuidades do passado colonial: as plantações de cacau, sobretudo na África Ocidental, persistiram em regimes de exploração. Crianças trabalhando sob calor escaldante, agricultores recebendo centavos por quilo, florestas dizimadas para sustentar a demanda global. Enquanto o consumidor moderno desenvolvia um paladar por bombons, a estrutura socioeconômica por trás do chocolate permanecia assombrada por sua origem imperial.
Contudo, o século XXI também tem testemunhado tentativas de reconciliação com essa história. Iniciativas agroflorestais como o cacau cabruca no sul da Bahia representam um esforço de recuperar práticas tradicionais e criar cadeias produtivas mais justas e ecológicas. Agricultores, cientistas e comunidades indígenas estão resgatando variedades nativas e desafiando os modelos excludentes do agronegócio. Celebrar o Dia do Cacau, portanto, não é apenas um gesto festivo, mas um convite à memória crítica. É reconhecer que toda barra de chocolate carrega séculos de violência e resistência, de mitologia e economia, de floresta e fábrica.
🔍 Curiosidade
Os maias acreditavam que o deus Kukulkán ensinou aos humanos como preparar a bebida de cacau após roubá-la do paraíso. Curiosamente, até hoje há famílias no sul do México que preservam receitas milenares e ritualísticas — em que o cacau é batido com madeira sagrada e servido em tigelas de cerâmica ancestral.
📚 Referências
Mintz, Sidney W. Sweetness and Power: The Place of Sugar in Modern History (Penguin Books, 1986)
Leissle, Kristy. Cocoa (Polity Press, 2018)
Instituto Cabruca – Agrofloresta e Sustentabilidade no Cacau
ICCO – International Cocoa Organization
FAO – Food and Agriculture Organization of the United Nations
Museu do Cacau da Bahia
UNESCO – Patrimônios alimentares e saberes tradicionais
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