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Dia do Estudante: a chama que atravessa séculos

  • Foto do escritor: Sidney Klock
    Sidney Klock
  • há 2 horas
  • 5 min de leitura

Todo 11 de agosto, o Brasil acende uma vela na memória: ela ilumina os rostos inquietos de quem estuda, mas também os corredores por onde a própria cultura nacional aprendeu a caminhar. A data ressoa como um sino antigo — criado em 1827, quando a lei imperial instituiu os primeiros cursos jurídicos do país, em São Paulo e em Olinda. Mais que uma providência administrativa, foi ali que se ergueram centros vivos de cultura e debate, berços de ideias que moldariam a consciência brasileira.

Neste rito anual, não se homenageia apenas uma categoria: reverencia-se uma linhagem. O estudante é o mensageiro que atravessa tempos, reencenando, com novos gestos, o velho impulso de aprender e transformar. No Brasil, esse reconhecimento traduz uma intuição antiga: a de que a sala de aula é menos um lugar e mais um destino — um caminho que, ao ser trilhado, redesenha a paisagem.


Jovem caminha por estrada de livros entre coluna dórica, arco gótico e pátio renascentista; névoa dourada, tons pastéis.
Arte: SK

A longa travessia do saber


Muito antes das cátedras modernas, figura um caminhante: o aprendiz antigo que perseguiu a sabedoria entre mares e colunas gregas. A Academia de Platão e o Liceu de Aristóteles foram santuários onde jovens convergiam como peregrinos do espírito, inaugurando uma mobilidade intelectual que se tornaria marca do ethos estudantil. Os peripatéticos — que filosofavam caminhando — antecipam o traço que os séculos fixariam: a busca pelo saber exige movimento, cria pontes e redes que atravessam fronteiras culturais.

Na Idade Média, essa travessia se encarna num organismo novo: a universitas magistrorum et scolarium. Bologna, Paris e Oxford tornam-se protótipos de uma instituição sem modelo clássico, fruto do gênio medieval, nascida antes do texto e dos estatutos — uma criação consuetudinária, orgânica, que reunia mestres e estudantes em corpo vivo.

O cenário urbano medieval, por sua vez, era um teatro de encontros: clérigos, comerciantes, mestres, guerreiros e citadinos dividiam ruas e valores, criando um caldo cosmopolita propício à difusão do conhecimento. Ali, as universidades florescem não como fortalezas, mas como encruzilhadas.

Na Península Ibérica, a Universidade de Salamanca surge como farol do saber, fundada em 1218 e transformada, na Idade Moderna, no principal centro da monarquia hispânica — um polo que atraiu, inclusive, estudantes dos Açores e costurou laços duradouros de circulação intelectual. Ao lado, em Al-Andalus, cidades como Córdoba, Toledo e Granada sustentaram uma tradição de trocas: debates, pesquisas, colaborações e seminários que adensaram a paisagem do conhecimento.

Do Renascimento em diante, a educação se reconfigura com a pauta humanística: o estudante passa de receptáculo a protagonista, transitando do studium generale para a universidade moderna e integrando letras e ciências numa visão de mundo mais ampla e desassombrada.


Quando a vida estudantil vira poema, pedra e pergaminho


Entre os séculos XI e XIII, sob a pele das universidades, irrompem os goliardos — clérigos errantes e provocadores, poetas da mobilidade intelectual, que escreviam em latim para um público de pares. Sua arte, satírica e filosófica, compõe o tecido de uma boêmia estudantil inaugural. No Carmina Burana, ressoam amores, vinhos, críticas e reflexões que transformam a condição estudantil em canto partilhado. É a vida acadêmica virando música — e a inquietação, forma.

Já em Bologna, no século XIV, a cidade ergueu monumentos funerários que retratam o mestre ensinando seus discípulos: esculturas que inscrevem, na pedra, o nascimento de um novo ator social — o mestre leigo — e dão à cena acadêmica a dignidade de um motivo artístico. A aula, enfim, também é imagem.

E se o mármore fixa, o manuscrito circula: a dinâmica do livro na universidade medieval — empréstimos, cópias, cadeias de transmissão — desenha as primeiras redes de compartilhamento do conhecimento. Ao virar página, o estudante medieval inventa, sem saber, uma arquitetura de difusão que nos ecoa.


Aquilo que a juventude ergueu


A história universitária latino-americana conhece, em 1918, o estalo de uma reforma que atravessa fronteiras: em Córdoba, estudantes redigem o Manifiesto Liminar e afirmam pilares que se tornariam identitários da região — autonomia universitária, participação estudantil na gestão, liberdade de cátedra, frequência livre. Ali nasce também uma figura simbólica, o estudiante-luchador, cuja identidade é simultaneamente individual, universitária e sociopolítica.

No coração europeu, 1968 devolve à juventude a força das ruas. Em Paris — da Universidade de Nanterre à Sorbonne —, uma onda estudantil encontra uma greve geral multitudinária e busca reconfigurar o tecido da convivência, experimentando a expressão autônoma e o controle do trabalho coletivo como gramáticas de uma democracia mais intensa.

O Brasil também reconheceu, em 1968, a coragem da resistência estudantil: a morte de um estudante e as grandes mobilizações revelaram habilidade organizativa e consciência crítica no enfrentamento de um período duro da vida nacional. A contribuição estudantil, aqui, foi o de lembrar que pensar e agir, juntos, fazem parte da mesma lição.

Além das datas, há biografias que se tornam farol. No século XII, em Paris, a história de Pedro Abelardo e Heloísa condensa a tensão entre razão e sentimento no mundo universitário medieval: um romance escandaloso ao seu tempo, mas também um diálogo filosófico e teológico que fez de Heloísa uma voz singular, frequentemente encoberta pelo brilho do drama amoroso.

E há, ainda, as redes: entre os séculos XII e XV, estudantes e mestres portugueses frequentaram as escolas parisienses, tornando o Atlântico um corredor de ideias e afetos intelectuais. O que aprenderam não ficou em Paris; a experiência retornou, transformando a paisagem cultural lusitana.


Aprendizagens que moldam mundos


No Brasil, as primeiras faculdades de Direito não foram apenas instituições de ensino: tornaram-se fornalhas públicas, onde positivamente se aqueceram debates literários, republicanos e abolicionistas. O estudante, assim, não foi mero passageiro da história, mas um de seus artesãos.

Desde então, a cultura estudantil, aqui e fora, expandiu os modos de existir. Do humanismo renascentista — que ampliou o horizonte do conhecimento — à vibração dos anos 1960, a experiência de aprender forjou sensibilidades, práticas coletivas, linguagens artísticas e repertórios éticos. O que chamamos de vida pública é, muitas vezes, a reverberação dessas salas de aula abertas para o mundo.

No século XXI, a pauta estudantil continua múltipla e diversa. No Brasil, as manifestações da década de 2010 reativaram uma memória de participação, experimentando novas formas de organização e de enunciação. Mesmo quando parece haver apatia, há uma vocação transformadora que resiste — uma busca persistente por novos modos de existência.

Em todos os tempos, a cultura estudantil reencena um ritual: entrar numa instituição para, com o tempo, ampliar as bordas da própria instituição; entrar num texto para, com outros, escrever o texto seguinte. O estudante é, assim, memória ativa da sociedade que virá.


Curiosidade


Reza a imagem que, nos anfiteatros antigos, a voz encontra a pedra e retorna intacta. Talvez por isso cada 11 de agosto pareça despertar todos os estudantes que já foram: os goliardos das tavernas, os humanistas renascentistas, os reformistas de Córdoba, os jovens que cobriram de poesia as ruas de 1968. A figura do estudante não morre — metamorfoseia-se. E, como a borboleta, guarda em suas asas a memória da lagarta.


Referências


 
 
 

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