Dia Internacional dos Povos Indígenas: arte, memória e permanência
- Sidney Klock
- há 3 dias
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Há datas que soam como conchas: levamos ao ouvido e ouvimos rios antigos correndo por dentro. O Dia Internacional dos Povos Indígenas, celebrado em 9 de agosto, é uma dessas conchas — um chamado à memória e à imaginação. Sua origem remete ao 9 de agosto de 1982, quando se reuniu pela primeira vez, em Genebra, o Grupo de Trabalho sobre Populações Indígenas das Nações Unidas, inaugurando um período de escuta institucional a vozes que já cantavam há milênios.
Não nasceu do acaso: ao longo de 25 anos de negociações, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007) conferiu dignidade jurídica internacional a 476 milhões de pessoas em 90 países — um reconhecimento que também é convite à responsabilidade.
O que essa data guarda de mais profundo, porém, não é apenas um marco histórico. É um lembrete de que a beleza, a filosofia e a arte florescem onde a relação com a terra é ritual, cuidadosa, recíproca. A seguir, um percurso poético e crítico que entrelaça contexto histórico, relevância artística, contribuições intelectuais e impacto cultural — uma tapeçaria tecida exclusivamente com os fios do anexo.

Contexto histórico
O encontro entre mundos no século XVI foi uma fricção de cosmologias. Nas cartas e ações de jesuítas como Manuel da Nóbrega e José de Anchieta, percebemos tanto o impulso missionário quanto o assombro diante da sofisticação intelectual e artística dos povos originários. Anchieta, com seu teatro missionário, criou uma linguagem híbrida que entrelaçava elementos tupi e formas europeias — um primeiro exercício de tradução estética entre mundos.
No mesmo período, a América espanhola viu erguer-se uma defesa vigorosa dos direitos dos povos nativos na voz de Bartolomé de las Casas (1484–1566), cuja “teologia da resistência” questionou bases morais e jurídicas da colonização. Esses registros não apenas documentam a violência do encontro; revelam também a profundidade das culturas que resistiam, com línguas, artes e cosmologias próprias.
Séculos antes desse choque, as paredes de pedra já guardavam a memória. No Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, encontra-se um dos mais ricos conjuntos de arte rupestre do mundo, reconhecido pela UNESCO. Algumas pinturas datam de mais de 12.000 anos e registram rituais, caçadas e danças — verdadeiros códices da pré-história americana.
Esse arco histórico culmina, no século XX, na institucionalização do dia 9 de agosto como data internacional dedicada aos povos indígenas, e no horizonte mais amplo aberto pela Declaração de 2007. É uma linha de continuidade que liga o gesto mais antigo de narrar o mundo — traços na pedra — ao mais recente esforço global de reconhecer direitos e escutar saberes.
Relevância artística
A arte indígena não ilustra o mundo: ela o sustenta. Em cada gesto, a forma é um modo de existir.
Na cerâmica Kadiwéu, do Mato Grosso do Sul, encontramos padrões geométricos que codificam narrativas cosmológicas e genealógicas. É uma linguagem visual elaborada por mulheres, transmitida de geração em geração, patrimônio imaterial de valor inestimável.
A arte plumária dos Kayapó e dos Bororo, por sua vez, organiza penas segundo sentidos cosmológicos precisos: a combinação em cocares, mantas e ornamentos comunica linhagem, status e vínculos espirituais. É uma gramática do visível que faz do corpo um território simbólico.
Esse vigor criador se espraia para linguagens contemporâneas: o cinema indígena brasileiro desenvolve uma estética que une técnicas atuais e narrativas tradicionais — um “cinema xamânico” que expande as possibilidades expressivas do audiovisual. Nas artes visuais, criadores indígenas dialogam com circuitos globais sem abrir mão de referenciais cosmológicos, instaurando pontes entre mundos que não são opostos, mas complementares.
A relevância artística, portanto, é também filosófica: cada objeto, cada trama, cada performance reitera que conhecer é relacionar-se — com a matéria, com o território, com o tempo.
Contribuições (intelectuais e espirituais)
A literatura indígena contemporânea tornou-se uma das forças intelectuais mais vibrantes do Brasil. Ailton Krenak formula uma crítica radical à modernidade ocidental, enraizada na cosmologia krenak, propondo uma ontologia relacional que desfaz fronteiras rígidas entre natureza e cultura.
Davi Kopenawa, xamã yanomami, em parceria com Bruce Albert, ofereceu em A Queda do Céu um marco de etnografia colaborativa: autobiografia, tratado cosmológico e manifesto se entrelaçam para pensar, desde a floresta, o apocalipse ecológico contemporâneo.
A autoria feminina indígena encontra em Eliane Potiguara uma voz decisiva, em que poesia, espiritualidade e crítica social se entrelaçam para reivindicar direitos não apenas territoriais, mas também epistemológicos — o direito de dizer o mundo a partir de outra matriz de saber.
Mais que um “gênero”, a literatura indígena aparece como “literatura de emergência”, que questiona os próprios critérios de literariedade ao incorporar oralidade, visualidade e performance. A noção de “língua-mátria” aponta para uma relação afetiva e territorial com a linguagem, na qual falar e habitar se tocam.
Essas obras não apenas renovam a crítica, a filosofia e a ética ambiental: elas mostram que o pensamento pode brotar de lugares e relações, como uma nascente que percorre subterraneamente a história e ressurge em tempos de crise.
Impacto cultural
Museus, arquivos e comunidades constroem hoje novas éticas de conservação e retorno. O Museu Nacional do Rio de Janeiro — fundado em 1818 — abrigou uma das mais importantes coleções etnográficas indígenas das Américas; a coleção Karajá, reunida por William Lipkind (1938–1939), é exemplo da densidade estética e narrativa desses acervos. O incêndio de 2018 foi uma perda irreparável, mas os esforços de reconstrução e digitalização revelam a resiliência da memória cultural — memória que transcende a materialidade.
A “Expedição do Guaporé 2022” sinaliza um caminho de repatriação baseada no retorno do conhecimento às comunidades: a publicação em português dos diários de Emil Heinrich Snethlage (1933–1935) e sua apresentação às pessoas retratadas consolidam uma ética museológica colaborativa.
Na esfera educativa, a Lei 11.645/2008 tornou obrigatório o ensino de história e cultura indígena no ensino fundamental e médio, estimulando currículos que integrem conhecimentos ancestrais e contemporâneos — uma mudança estrutural na maneira de formar novas gerações.
O impacto cultural também se espelha em territórios-síntese como a Chapada do Araripe, onde os Kariri testemunham uma continuidade milenar. A Festa do Pau da Bandeira, de Barbalha, reconhecida como Patrimônio Imaterial brasileiro, ilustra a simbiose entre natureza e cultura e a permanência de rituais que atravessam séculos.
Por fim, as encruzilhadas do presente — mudanças climáticas, pandemias — têm atingido comunidades indígenas de maneiras desproporcionais; ainda assim, emergem respostas baseadas em conhecimentos tradicionais de organização e cuidado, revelando uma engenharia social enraizada na reciprocidade.
Curiosidade
Entre os Yanomami, diz-se que os sonhos são janelas por onde os xamãs atravessam dimensões. Durante a pandemia de 2020, anciãos relataram sonhos coletivos em que ancestrais sussurravam modos de proteção — lembrete de que a sabedoria opera em frequências que escapam ao tempo linear e à geografia. “Aqui estamos e não nos vamos!” — um grito que é menos slogan e mais voto de pertença ao tecido cósmico da vida.
Referências
Museu Nacional do Rio de Janeiro — acervo etnográfico indígena (coleção Karajá, William Lipkind).
Parque Nacional da Serra da Capivara (UNESCO) — arte rupestre milenar.
Expedição do Guaporé 2022 — repatriação de patrimônio e retorno colaborativo do conhecimento.
Lei 11.645/2008 — ensino de história e cultura indígena na educação básica.
Obras e artigos acadêmicos citados:
Celebrar 9 de agosto é afinar a escuta para um coro de longuíssimo alcance: dos traços na pedra às palavras que adiam o fim do mundo, dos cocares às telas de cinema, das festas de raiz à pesquisa acadêmica. É reconhecer que, na permanência ancestral, pulsa um futuro mais amplo, e que a beleza é também um modo de cuidar.
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