Dia Mundial de Combate à Desertificação e à Seca
- Sidney Klock
- 28 de nov.
- 4 min de leitura
O chamado do Cerrado brasileiro para restaurar a terra e reinventar o futuro
Quando a terra pede água poeticamente
No silêncio avermelhado do planalto central, o vento levanta pequenas espirais de pó. Cada grão conta uma história: já foi húmus, já abraçou raízes, já saciou nascentes que alimentam oito das doze grandes bacias hidrográficas do Brasil. Hoje, esse mesmo solo sibila sede. A intensificação dos eventos extremos — chuvas torrenciais seguidas de estiagens prolongadas, fenômeno que climatologistas chamam de hydroclimatic whiplash — dobrou em frequência na última meia-década, segundo dados recentes da NASA.
Neste 17 de junho, Dia Mundial de Combate à Desertificação e à Seca, a pergunta ecoa: como restaurar a terra que nos resta? O tema global de 2025 — “Restore the Land. Unlock the Opportunities” — convida-nos a enxergar na crise um portal para futuros férteis.

O que é o Dia Mundial de Combate à Desertificação e à Seca?
Instituída pela ONU em 1994, a data marca o lançamento da Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação (UNCCD). Três décadas depois, a meta permanece intacta — deter a perda de solos e garantir segurança hídrica e alimentar. Em sua última COP, porém, líderes reconheceram um déficit: os US$ 12 bilhões prometidos representam apenas 3% dos US$ 355 bilhões anuais necessários até 2030 para frear a degradação mundial.
Cerrado: coração seco, fonte de águas
O Cerrado cobre quase 24 % do território brasileiro e sustenta cabeceiras que irrigam o Amazonas, o São Francisco e o Prata. Metade de sua vegetação original, contudo, já foi convertida. Estudos climáticos mostram que, entre 1991 e 2021, o volume de chuvas na estação seca caiu até 50 % em porções do bioma, especialmente no eixo central-norte.
Essa redução de pluviosidade coincide com aumento da temperatura média e da pressão atmosférica, fatores que dificultam a formação de nuvens. O resultado? Mais queimadas, menor infiltração no solo, rios de vazão decrescente.
Feridas abertas: desertificação hoje no Cerrado
Segundo a nova plataforma MapBiomas Degradação, o Cerrado detém a maior área absoluta de vegetação degradada do país — até 43 milhões de hectares, ou 45 % da cobertura nativa remanescente.
O município de Gilbués (PI) ilustra o colapso: classificado como o maior núcleo de desertificação do Brasil, exibe solos arenizados onde até cactos custam a vingar. Em paralelo, relatórios de organizações independentes detectam mais de 26 mil hectares de desmatamento associado à soja no Cerrado apenas no último trimestre de 2023.
Raízes da crise — clima, uso do solo e economia
A equação da desertificação combina:
Mudanças climáticas globais que alongam estações secas e ampliam a evapotranspiração.
Expansão agropecuária e monocultura de soja, que substituem a vegetação profunda do Cerrado por cultivos rasos, diminuindo a recarga hídrica subterrânea.
Fogo recorrente e invasão de gramíneas exóticas, que enfraquecem o banco de sementes nativas e rompem ciclos ecológicos.
O resultado manifesta-se em rios encurtados, perda de matéria orgânica e migração rural, pois a terra improdutiva expulsa quem dela dependia.
Restauração e resistência: caminhos que brotam
Apesar do cenário dramático, brotam iniciativas inspiradoras:
Sistemas agroflorestais de pequeno porte, que combinam pequi, baru e culturas alimentares, aumentando renda e cobertura verde.
Integração Lavoura-Pecuária-Floresta em fazendas de grande escala, já responsável por recuperar 17 mil ha de pastagens degradadas em Goiás desde 2020.
Monitoramento satelital cidadão (MapBiomas, Mapear Água) que orienta ações municipais de contenção de voçorocas.
Alianças internacionais como a International Drought Resilience Alliance, que estimulam fundos de adaptação a nível de paisagem.
Financiamentos mais sólidos, defendem especialistas, precisam ir além de compensar emissões; devem priorizar restauração ecológica que gere empregos locais e alimento saudável.
A poesia da terra que volta a pulsar
Desertificação não é sentença, mas biografia inacabada. Solos que racham hoje podem, amanhã, acolher raízes novamente se receberem água, sombra e cuidado humano. O Cerrado — “floresta de cabeça-para-baixo”, onde 70 % da biomassa está nas raízes — ensina que a vida se reconstrói de dentro para fora. Que o 17 de junho de 2025 não seja apenas uma data, mas uma promessa coletiva: restaurar a terra, desbloquear as oportunidades e, assim, devolver à próxima geração o direito de beber na mesma nascente que cantava nossos avós.
Curiosidade
Você sabia que uma única árvore de pequi pode armazenar até 3 000 litros de água em seu sistema radicular durante a estação chuvosa, liberando-os lentamente no solo ao longo da seca? Essa “cisterna viva” é um aliado natural contra a desertificação — motivo pelo qual povos tradicionais consideram o pequi um guardião das águas do Cerrado.
Referências
NASA, relatório de extremos hídricos (2025). theguardian.com
UNCCD, Tema oficial do Desertification & Drought Day 2025. unccd.int
Carbon Brief, balanço financeiro da COP16 sobre desertificação (2024). carbonbrief.org
Pesquisa FAPESP, “Droughts worsen in the Cerrado” (2023). revistapesquisa.fapesp.br
MapBiomas Degradação, relatório inaugural (2024). brasil.mapbiomas.org
Folha de S.Paulo, núcleo de desertificação em Gilbués (2024). www1.folha.uol.com.br
Mighty Earth & Mongabay, monitoramento de desmatamento pela soja (2024). news.mongabay.com
MDPI Sustainability, estudo sobre redução de vazão em bacias do Cerrado (2025). mdpi.com
IDRA / UNCCD, iniciativas globais de resiliência à seca (2025). unccd.int



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