🌿 Dia Nacional do Povo Cigano: Uma História de Liberdade, Estigma e Resistência
- Sidney Klock
- 24 de mai.
- 4 min de leitura
Introdução
"Somos do mundo, sem pátria fixa, mas com raízes na alma. Carregamos a história em nossos passos, e a liberdade em nossos olhos."
No dia 24 de maio, o Brasil celebra o Dia Nacional do Povo Cigano — uma data que transcende a simples homenagem. É um convite à escuta, à memória e ao reconhecimento de um dos grupos mais antigos e estigmatizados da história humana. Com sua música, sua dança, sua língua e seus modos de viver, os ciganos nos ensinam que a liberdade tem um preço: o do preconceito, da invisibilidade e da luta constante por dignidade.
Mas afinal, quem são os ciganos? De onde vieram? Por que foram (e ainda são) perseguidos? E o que podemos aprender com a sua trajetória errante e luminosa?
Este artigo é um mapa poético e histórico sobre um povo que, mesmo sem fronteiras, deixou rastros profundos por onde passou — inclusive no coração do Brasil.

A origem dos ciganos: um povo que caminha há mil anos
Embora muitos imaginem que os ciganos sejam originários da Europa, suas raízes estão na Índia, mais especificamente nas regiões dos atuais estados do Rajastão e do Punjab. Há registros de que, por volta do século XI, grupos deixaram o subcontinente indiano rumo ao Ocidente, movidos por conflitos, invasões ou simplesmente por tradições nômades já antigas.
Ao longo dos séculos, esses grupos se espalharam por todo o mundo — do Egito à Espanha, dos Bálcãs ao Brasil —, e ganharam diferentes nomes: Rom, Sinti, Kalé, Manush, Dom, Lom, entre outros. Cada nome carrega uma identidade linguística, cultural e até espiritual.
“Cigano”, no entanto, é um termo genérico, muitas vezes imposto externamente. Em muitos casos, ele carrega estigmas e estereótipos que não refletem a diversidade interna do povo.
Os ciganos no Brasil: chegadas, trajetórias e preconceitos
Os primeiros registros da presença cigana no Brasil datam do século XVI, ainda no período colonial. Documentos indicam que o rei de Portugal deportava ciganos para a colônia como forma de punição. Ou seja: desde o início, sua presença em terras brasileiras foi marcada por estigma e marginalização.
Ao longo dos séculos, vários grupos ciganos chegaram ao Brasil, principalmente os Calon (de origem ibérica), os Rom (de origem centro-europeia) e os Sinti (presentes em menor número).
Embora muitos tenham mantido suas tradições linguísticas, artísticas e espirituais, enfrentaram — e ainda enfrentam — preconceito institucionalizado, invisibilidade social e discriminação cultural.
A ideia do cigano como "enganador", "vagabundo" ou "ameaça" foi reforçada por séculos de estigmatização na literatura, na política e nas leis. No Brasil, ainda hoje, a maior parte dos ciganos não possui documentos, não tem acesso pleno à saúde, educação ou moradia digna, e vive em acampamentos constantemente ameaçados de despejo.
Cultura cigana: identidade, beleza e resistência
Apesar das dores e das perdas, a cultura cigana floresceu de forma resiliente. Sua expressão se dá pela oralidade, pela música, pela dança, pela espiritualidade e por um profundo senso de família e ancestralidade.
🎻 Música: Do flamenco à música balcânica, os ciganos foram (e são) fundamentais para a história musical de diversos países. Instrumentos como violinos, tambores e sanfonas fazem parte de seu cotidiano.
💃 Dança: Movimentos circulares, roupas coloridas e saias esvoaçantes são mais que estética — são narrativas corporais de liberdade.
📜 Línguas: Falam o Romani, língua indo-europeia com dezenas de variantes regionais. No Brasil, o Caló (um dialeto ibérico) é falado por muitos.
🔥 Espiritualidade: A fé cigana é sincrética, com fortes elementos do cristianismo popular, e marcada pela devoção à santa Sara Kali, a padroeira do povo cigano.
Sara Kali: a santa negra do povo sem terra
No dia 24 de maio, além de homenagear o povo cigano, celebra-se também o dia de Sara Kali, uma santa popular venerada principalmente no sul da França, onde milhares de ciganos peregrinam todos os anos até Saintes-Maries-de-la-Mer.
Sara representa a força feminina, a proteção espiritual e a ancestralidade cigana. Diz a lenda que ela teria acolhido os náufragos da família de Maria (mãe de Jesus) ao chegarem na costa francesa. Negra, marginal, estrangeira — como o próprio povo que a venera.
No Brasil, a imagem de Sara Kali tornou-se um símbolo da espiritualidade cigana, frequentemente confundida com orixás africanos ou com entidades espirituais sincréticas. Em muitos terreiros, ela é saudada como símbolo de proteção e justiça.
O Dia Nacional do Povo Cigano: memória e reivindicação
A data de 24 de maio foi instituída no Brasil em 2006, pelo Ministério da Cultura, como forma de valorizar e reconhecer a cultura cigana. Mas ainda está longe de ser plenamente celebrada.
Afinal, qual é o peso de uma homenagem diante de séculos de exclusão?
Mais que uma data, o Dia Nacional do Povo Cigano precisa ser um movimento: por políticas públicas inclusivas, pela proteção dos territórios nômades, pelo respeito à sua cultura e pelo fim do preconceito.
O que podemos aprender com os ciganos?
Num mundo cada vez mais acelerado, urbano e digital, o povo cigano nos oferece lições urgentes:
A arte como linguagem universal
A liberdade como valor inegociável
A memória como forma de resistência
O corpo como território espiritual
A convivência com o diferente como sabedoria ancestral
Curiosidade: Por que a palavra “cigano” soa tão simbólica?
A etimologia da palavra “cigano” no português remete ao termo espanhol “gitano”, derivado do francês “gitan” e, antes disso, do grego “Athinganoi” — nome dado a uma seita considerada herética no Império Bizantino.
Curiosamente, essa confusão histórica entre religiões, povos e estigmas mostra como o “cigano” foi sempre o outro — aquele que está fora da norma, do centro, da cidade. E é justamente aí que reside sua força simbólica: um povo que sobreviveu ao exílio e transformou a margem em caminho.
Referências:
Assis, Cláudia P. "Ciganos no Brasil: história, cultura e direitos." Revista USP, 2021.
Mota, Clarissa. Ciganos: identidade e preconceito. Editora Unesp, 2019.
Rodrigues, Luiz. História do Povo Romani. Fundação Cultural Palmares.
UNESCO – Romani Culture in Europe.
Ministério dos Direitos Humanos – Cartilha sobre o Povo Cigano.
Revista Cult – “Sara Kali: espiritualidade e resistência”.
IBGE – Dados sobre povos tradicionais no Brasil (2022).
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