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Giacomo Casanova, Entre Máscaras, Manuscritos e o Fascínio da Liberdade

  • Foto do escritor: Sidney Klock
    Sidney Klock
  • 28 de nov.
  • 4 min de leitura

“Não tenho outro bem além da minha liberdade. Perdê-la é morrer.”


Assim escreveu Giacomo Casanova, o homem cujo nome se tornou sinônimo de sedução, mas cuja vida real transborda muito além da caricatura popular. A história de Casanova é, na verdade, a história de um espírito inquieto que atravessou o século XVIII como um cometa, ora amado, ora temido, sempre livre.


Entre máscaras venezianas, prisões sombrias, salões iluministas e a pena afiada de um memorialista, Casanova viveu não apenas como um amante, mas como um pensador, um buscador, um sobrevivente da própria época. E, ao final, tornou-se também seu melhor cronista.


Retrato artístico de Giacomo Casanova em Veneza do século XVIII, vestindo traje nobre com rendas e chapéu tricorne. Ele está sentado à mesa, escrevendo à luz de velas, com um baile de máscaras ao fundo e candelabros brilhando em um salão barroco.
Arte: SK

Um filho da República das Máscaras


Veneza, 1725. A cidade flutuava, literalmente, entre águas, segredos e rituais sociais. Nascido na Sereníssima República, Giacomo Girolamo Casanova era filho de atores itinerantes, pertencendo, portanto, à camada marginal do mundo veneziano.


Desde cedo, enfrentou as dualidades que marcariam sua vida: o sagrado e o profano, a erudição e o escândalo. Aos 16 anos, já era doutor em direito, mas preferia a alquimia, a cabala e o jogo.


A Veneza do século XVIII era uma cidade em declínio político, mas ainda exuberante em cultura e decadência. Seus bailes de máscaras não eram apenas entretenimento, eram símbolos de uma sociedade onde a identidade era fluida, onde se podia ser tudo... por uma noite. E Casanova dominava essa arte como poucos.


Aventuras além da sedução


Reduzir Casanova a um simples libertino é tão impreciso quanto chamar Leonardo da Vinci de “pintor de retratos”. Casanova foi espião, diplomata, músico, matemático, escritor e fugitivo. Falava várias línguas, lia os clássicos e mantinha correspondência com grandes pensadores, como Voltaire e Rousseau.


Seus amores eram muitos, e sim, foram incontáveis, mas não triviais. Casanova apaixonava-se profundamente e com sinceridade. Em seus escritos, fala de cada amante com respeito, admiração e até reverência. O que o movia não era a conquista, mas a experiência do instante, a intensidade de cada encontro.


Em Paris, tornou-se amigo de filósofos iluministas e passou a frequentar os bastidores do poder. Em Londres, conheceu a frieza do exílio. Em Viena, duelou por honra. Em São Petersburgo, conversou com a imperatriz Catarina, a Grande. Foi preso pela Inquisição e escapou de forma espetacular do Piombi, a temida prisão veneziana sob os telhados do Palácio Ducal.


A autobiografia de Giacomo Casanova como redenção


Casanova escreveu a sua autobiografia monumental, Histoire de ma vie (História da minha vida), nos seus anos finais, exilado num castelo na Boêmia, já idoso, longe dos salões que um dia encantou. O mundo havia mudado. A Revolução Francesa demolira antigos símbolos. O tempo das máscaras estava passando.


Em sua obra, composta por mais de 3 mil páginas, Casanova não apenas narra aventuras sensuais, mas revela uma Europa vibrante e contraditória: cheia de religiosidade e ceticismo, de luxo e miséria, de racionalismo e superstição.


Ali está a alma do século XVIII, e ali está também sua própria: um homem que amou a liberdade acima de tudo. Sua pena é ao mesmo tempo precisa e melancólica, como se ao escrever revivesse cada instante perdido, cada olhar fugaz, cada despedida inevitável.


Entre o Iluminismo e a transgressão


Casanova viveu num tempo em que pensar livremente era, muitas vezes, um ato perigoso. Em seu modo de viver, ele incorporou algo do espírito iluminista: a recusa de aceitar limites impostos pela tradição ou pelo nascimento.


Contudo, não era um revolucionário no sentido político. Ele buscava a revolução interior, o direito de ser múltiplo, de errar, de recomeçar. Era um homem em busca do sublime, ainda que às vezes mergulhasse no escândalo.


Ele próprio escreveu:

“Eu vivi como um filósofo, mas cometi todos os pecados de um homem comum.”

Essa tensão entre desejo e pensamento, entre liberdade e consequência, é o que torna Casanova tão fascinante. Ele é um espelho do humano: intenso, contraditório, apaixonado pela beleza do mundo, mesmo quando esse mundo o rejeita.


O homem por trás do mito


Ao morrer em 1798, Giacomo Casanova deixou uma vida cheia de histórias... e uma história cheia de vida. Seu nome foi, com o tempo, simplificado e sexualizado, até tornar-se sinônimo de “conquistador”. Mas seu verdadeiro legado está na complexidade com que viveu, e escreveu.


Hoje, estudiosos reconhecem Histoire de ma vie como um dos maiores testemunhos do século XVIII, comparável em riqueza e profundidade às Confissões de Rousseau ou aos Ensaios de Montaigne. Sua escrita é clara, elegante e apaixonada, e nos permite vislumbrar o mundo antes das revoluções, um mundo ainda em transição entre sombras medievais e a luz da razão.


Curiosidade


O manuscrito original de Histoire de ma vie, escrito em francês, ficou perdido por mais de um século. Foi encontrado em 1945 num cofre de banco na Alemanha, em plena Segunda Guerra Mundial. Até então, o mundo conhecia apenas versões censuradas da obra. A edição integral só foi publicada pela primeira vez em 1960, em Paris, e desde então, Casanova ressuscitou, finalmente em sua plenitude.


Referências


  • Casanova, Giacomo. Histoire de ma vie. Paris: Gallimard, 1960 (edição integral).

  • McCarthy, Patrick. Casanova: A Life. Yale University Press, 1999.

  • Lachman, Marvin. The Villainous Stage: Crime Plays on Broadway and in the West End. McFarland, 2014.

  • Kavanagh, Thomas. Enlightenment and the Shadows of Chance: The Novel and the Culture of Gambling in Eighteenth-Century France. Johns Hopkins University Press, 1993.

  • Martineau, Jane. The Glory of Venice: Art in the Eighteenth Century. Yale University Press, 1994.

 
 
 

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