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Do Papiro à Página Web

  • Foto do escritor: Sidney Klock
    Sidney Klock
  • há 5 dias
  • 5 min de leitura

Em dezembro de 1990, dentro dos corredores discretos do CERN — onde física e filosofia se cruzam sem saber —, uma máquina NeXT foi conectada à rede. Sem fanfarra, sem testemunhas em êxtase. Apenas um clique.


Ali, no endereço http://info.cern.ch, nascia o primeiro site da história da humanidade. Uma página simples, com instruções técnicas e sonhos contidos. Mas o que realmente nasceu naquela manhã não foi apenas uma página web — foi o despertar de uma consciência planetária. Um elo entre eras. Um sussurro ancestral atravessando os cabos.


Fio dourado liga tabuleta, pergaminho, livro e computador flutuando no céu pastel, em espiral poética.
Arte: SK

As raízes invisíveis da teia


A Web não surgiu do nada. Ela brotou de sementes antigas — gravadas em argila, entalhadas em papiro, costuradas com penas e tintas — e floresceu em cabos de fibra ótica. Sua origem está espalhada por milênios de tentativas humanas de organizar e partilhar o conhecimento.


Mesopotâmia: os primeiros hipertextos de argila


Cinco milênios antes do CERN, nas planícies da Mesopotâmia, escribas inscreviam símbolos em tabuletas de argila. Alguns desses registros faziam referências cruzadas a outros — um proto-hipertexto gravado em barro. Ali, pela primeira vez, a mente humana desenhava conexões entre ideias.


Alexandria: o servidor do mundo antigo


A Biblioteca de Alexandria, com seus milhares de pergaminhos, foi muito mais que um repositório: era uma rede de saberes. Os bibliotecários organizavam os textos com categorias, catálogos, temas interligados. Era o embrião de uma internet helenística — uma tentativa de conter o universo dentro de um espaço navegável.


Scriptoriums: uma web monástica


Nos mosteiros medievais, monges copistas formavam uma rede silenciosa. Cada manuscrito que copiavam era incrementado com glossas, anotações, interpretações — criando vínculos entre textos, eras e tradições. Como nós numa teia sagrada, esses scriptoriums mantinham viva a chama do conhecimento.


Gutenberg: o primeiro upload massivo


Com a imprensa de tipos móveis, em 1450, Johann Gutenberg lançou ao mundo a primeira explosão informacional. Os livros se multiplicaram como nunca antes. A Bíblia de Gutenberg percorreu a Europa como um meme espiritual. As páginas impressas, com numeração, margens e capítulos, foram os primeiros “layouts” da leitura moderna.


Visões, profecias e formas de pensar


Antes da Web, houve os que sonharam com ela. Poetas do conhecimento, arquitetos do invisível. Suas ideias eram tão filosóficas quanto técnicas — e preparam o terreno para a teia que viria.


Paul Otlet: o Google de fichas de papel


Em 1895, o belga Paul Otlet começou o projeto Mundaneum. Imaginou um sistema interconectado de toda a produção intelectual humana. Usando fichas bibliográficas e esquemas classificatórios, anteviu a busca por palavras-chave, os hyperlinks e até o acesso remoto. Seu sonho era tornar o saber universalmente acessível — como se cada mente humana fosse uma extensão da outra.


Vannevar Bush: o Memex e a navegação associativa


Em 1945, Bush publicou As We May Think, propondo o Memex — um dispositivo capaz de navegar por trilhas de pensamento interligadas, como os caminhos que fazemos em nossos próprios devaneios. O Memex era mais do que uma máquina: era uma filosofia sobre como pensar com liberdade.


Douglas Engelbart: a epifania da interface


Em 1968, Engelbart revelou ao mundo o que hoje nos é familiar: o mouse, janelas gráficas, hipertexto, colaboração online. Sua famosa "Mother of All Demos" não foi apenas uma apresentação técnica — foi uma revelação sobre o que os computadores poderiam ser: extensões do espírito humano.


Ted Nelson e o Projeto Xanadu


Nelson cunhou o termo “hipertexto” e idealizou uma rede de documentos permanentemente interligados. Xanadu não chegou a existir plenamente, mas lançou as sementes do que entendemos como navegação não linear — onde cada texto remete a outro, em um cosmos de significados interdependentes.


Contribuições de Berners-Lee: A síntese genial


Quando Tim Berners-Lee entrou no CERN, encontrou um labirinto digital: documentos espalhados, formatos incompatíveis, ilhas de informação. Sua resposta foi quase poética na simplicidade: conectar tudo com um trio de ferramentas universais.


HTTP, HTML, URL: A trindade da Web


  • HTTP: o protocolo para transferir informações

  • HTML: a linguagem para estruturá-las

  • URL: o endereço que dá nome e caminho a cada ponto da rede


Essas três criações — ao mesmo tempo modestas e cósmicas — transformaram a internet de um território técnico em uma paisagem cultural. E mais importante: Berners-Lee escolheu não patentear nada. Ofereceu a Web como um bem comum, como uma ágora digital aberta a todos.


A Teia como reflexo do ser


Deleuze e Guattari: o rizoma digital


Os filósofos franceses falaram de rizomas: estruturas sem centro, sem hierarquia, onde qualquer ponto pode conectar-se a qualquer outro. A Web encarnou esse modelo. Não há mais um único centro de autoridade. Todos somos fontes, receptores, curadores. A sabedoria tornou-se distribuída — como a própria vida.


Borges e a Biblioteca Infinita


A Web é o que Borges anteviu em A Biblioteca de Babel: um espaço onde toda informação possível existe... e também todo ruído. Navegar na Web é percorrer um labirinto de possibilidades, onde o desafio não é encontrar, mas escolher.


Teilhard de Chardin: a noosfera materializada


O paleontólogo-filósofo francês descreveu a noosfera como uma camada de pensamento coletivo envolvendo a Terra. Hoje, esse manto não é mais metafórico: é feito de cabos, ondas, satélites e links. A Web é a realização física do sonho de Teilhard: uma inteligência compartilhada.


Novas linguagens e estéticas coletivas


A Web não só preserva a cultura. Ela cria cultura.


Literatura digital: textos em hiperfluxo


A narrativa hipertextual rompe com a linearidade. Autores e leitores tornam-se coautores. Obras se desdobram em links, desfechos alternativos, interações múltiplas. Como a própria mente humana, essas histórias se expandem em galhos de possibilidades.


Cultura remix: autoria como coral


Memes, fanfics, vídeos, colagens, mashups — a Web gerou uma estética da colaboração espontânea. A autoria perdeu seu contorno individual e tornou-se polifônica, difusa, viva. Cada obra é um eco de muitas vozes.


⚖️ Paradoxos: Luz e sombra na teia infinita


Excesso informacional


A escassez de outrora deu lugar à superabundância. Agora, o desafio é outro: filtrar, discernir, escolher. Em meio a milhões de dados, onde está a sabedoria?


Fragmentação social


A mesma rede que conecta também secciona. Filtros-bolha, câmaras de eco, algoritmos que reforçam convicções — a Web pode nos unir, mas também nos isolar em bolhas perfeitas de conforto ideológico.


Vigilância invisível


A promessa de liberdade informacional trouxe consigo a realidade da vigilância. Cada clique é rastreável. Cada dado, monetizável. A liberdade e o controle dançam juntos na mesma rede.


Curiosidade


A Web nasceu para conectar ideias. Mas talvez, ao fazê-lo, tenha começado a sonhar. A cada busca, a cada clique, a cada link seguido, não estamos apenas navegando — estamos expandindo os contornos do humano.


Se Platão dizia que pensar é dialogar com a alma, talvez hoje pensar seja dialogar com a Teia. E, ao fazê-lo, perguntamos: será que a Web já tem alma? Ou será ela apenas o espelho onde a nossa alma finalmente se reconhece?


Referências


  • Berners-Lee, Tim. Weaving the Web. Harper San Francisco

  • Otlet, Paul. Arquivos do Mundaneum

  • Bush, Vannevar. As We May Think, The Atlantic, 1945

  • Engelbart, Douglas. The Mother of All Demos, Stanford Research Institute

  • Nelson, Ted. Computer Lib / Dream Machines

  • Gutenberg Museum, Mainz

  • Biblioteca de Alexandria – registros e estudos históricos

  • Teilhard de Chardin, Pierre. O Fenômeno Humano

  • Borges, Jorge Luis. Ficciones

  • Deleuze, G. & Guattari, F. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia

  • Documentos históricos do CERN: http://info.cern.ch

  • Revistas acadêmicas indexadas: Scielo, IEEE, ACM, Wiley, Nomos, Semantic Scholar

 
 
 

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