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Hipátia de Alexandria e a última luz da Antiguidade

  • Foto do escritor: Sidney Klock
    Sidney Klock
  • 28 de nov.
  • 5 min de leitura

Em certos crepúsculos da história, a luz não desaparece de uma vez. Ela permanece nas bordas do tempo, hesitando entre ficar e partir, enquanto as sombras avançam sobre cidades e bibliotecas. Hipátia de Alexandria foi uma dessas luzes, uma filósofa, matemática e astrônoma que fez da própria vida um caminho entre números, estrelas e perguntas que não se extinguem com a morte.


Nos seus últimos dias, Alexandria já não era a mesma cidade de brilho helenístico que recebera caravanas de livros e sábios vindos de longe. Ali, em ruas estreitas cheias de vozes discordantes, Hipátia caminhava entre colunas gastas, vestida de branco, guiando alunos que a escutavam falar sobre a alma, o cosmos e as proporções invisíveis que sustentam o mundo. Não empunhava armas, apenas argumentos. E foi precisamente por isso que se tornou alvo.


Representação artística de Hipátia de Alexandria em 415 d.C., de pé em uma rua antiga coberta de poeira, sob o céu dourado do entardecer. Ela veste uma túnica branca manchada de sangue e pó, com os cabelos negros ao vento, olhando para o alto com serenidade. Ao seu redor, ruínas greco-romanas e uma multidão dividida entre fanáticos e rostos hesitantes. Um jovem monge segura uma pedra, sem coragem de lançá-la. A luz suave e partículas no ar criam uma atmosfera trágica e poética.
Arte: SK

Quem foi Hipátia de Alexandria


Nascida por volta de 355 d.C., em uma Alexandria ainda marcada pelo legado do período helenístico, Hipátia era filha do matemático e filósofo Teão de Alexandria. Crê-se que ele a tenha introduzido, desde cedo, nos estudos de geometria, astronomia e filosofia, seguindo a tradição de um saber que unia cálculo, observação do céu e reflexão sobre a natureza da realidade.


Formada na escola neoplatônica, Hipátia compreendia o mundo como uma hierarquia de níveis de ser, na qual o sensível remete ao inteligível. Em seus ensinamentos, o rigor matemático convivia com a busca de uma ordem espiritual, como se cada equação fosse uma pequena chave para um desenho maior. Ela teria comentado obras de Euclides, Diofanto e Apolônio, preservando e transmitindo tratados que, em boa parte, só chegaram até nós graças a essa cadeia de mestres e copistas.


A sua presença pública era incomum para o padrão do século V. Hipátia ensinava em espaços abertos e na escola de Alexandria, atraindo discípulos de diferentes origens religiosas e sociais. Entre eles, estavam figuras importantes da administração imperial, como Sinesio de Cirene, que mais tarde se tornaria bispo. Em um mundo amplamente patriarcal, a imagem de uma mulher ensinando filosofia e matemática em posição de autoridade intelectual parecia, por si só, desafiadora, mas ainda assim respeitada por muitos contemporâneos.


Alexandria no século V um mundo em transição


O século V fez de Alexandria uma cidade de fronteira entre dois tempos. O Império Romano do Oriente consolidava o cristianismo como religião dominante, enquanto antigas tradições pagãs perdiam espaço. No mesmo território conviviam comunidades cristãs divididas internamente, grupos judaicos influentes e remanescentes do paganismo filosófico e cívico.


As ruas fervilhavam de debates, mas também de conflitos. O episcopado alexandrino, figura central na vida urbana, acumulava autoridade espiritual e poder político. Cirilo, bispo de Alexandria a partir de 412 d.C., encarnava essa posição de força. Seu governo é retratado pelas fontes como intenso e complexo, marcado tanto por defesa da doutrina quanto por disputas com autoridades civis.


Hipátia, por sua vez, mantinha uma relação próxima com Orestes, o prefeito imperial de Alexandria. Essa proximidade política e intelectual fez com que alguns a enxergassem como conselheira do poder civil. Em um ambiente já tenso, ela passou a ser vista por setores mais radicais como um obstáculo à reconciliação entre o bispo e o prefeito, acusada de influenciar Orestes e de representar um saber antigo que não se curvava totalmente à nova ordem religiosa.


O assassinato de Hipátia e o fim de uma era


Em 415 d.C., Hipátia foi assassinada por um grupo de cristãos em Alexandria. As principais informações que possuímos vêm de autores como Sócrates Escolástico e de crônicas posteriores, que relatam o ato como resultado das tensões entre o círculo episcopal e o poder civil. Segundo esses relatos, a filósofa foi atacada por membros de uma confraria ligada ao bispado, arrastada para dentro de uma igreja e ali morta de forma brutal.


Os detalhes materiais do crime variam conforme a fonte e o tempo em que foram escritos. Algumas tradições tardias descrevem instrumentos cortantes, como cacos de cerâmica ou conchas afiadas, usados para dilacerar o corpo, que depois teria sido queimado fora da cidade. Mais do que a exatidão de cada pormenor, importa perceber o que essas narrativas procuraram sinalizar: a morte de uma mulher que se tornara símbolo de um modo de pensar associado à filosofia pagã e à ciência matemática.


A morte de Hipátia não selou, por si só, o fim do pensamento antigo. No entanto, a posteridade viu nesse episódio um marco simbólico, uma espécie de ponto de inflexão na delicada convivência entre filosofia pagã, ciência e cristianismo na esfera pública. Alexandria continuaria sendo um centro religioso importante, mas sua imagem de grande polo do saber helenístico nunca mais seria a mesma. Os espaços que um dia guardaram rolos, mapas e instrumentos astronômicos foram sendo ocupados por uma outra forma de organizar a memória, centrada nas instituições eclesiásticas.


O legado de Hipátia na memória do mundo


Hipátia atravessou os séculos como figura em torno da qual diferentes épocas projetaram as próprias perguntas. Racionalistas modernos a celebraram como mártir da razão diante do fanatismo. Movimentos feministas a leram como símbolo da presença feminina na história da ciência, tantas vezes ocultada. Artistas, romancistas e cineastas fizeram dela personagem de dramas que espelham inquietações contemporâneas.


Ao mesmo tempo, a pesquisa histórica recente busca separar o que é documento do que é lenda. Autores como Maria Dzielska e Edward Watts lembram que Hipátia foi, antes de tudo, uma filósofa neoplatônica inserida em sua própria tradição, e não apenas um emblema de conflitos entre ciência e religião. O fascínio que ela exerce hoje nasce justamente dessa confluência de camadas: a mestre que comentava tratados matemáticos, a conselheira de governantes, a mulher assassinada em um contexto de disputas políticas e religiosas.


O nome de Hipátia, que em grego remete ao que é elevado, parece ter cristalizado essa trajetória. Do chão das salas de aula de Alexandria às leituras que fazemos no presente, ela se tornou uma espécie de estrela fixa para quem procura entender como o saber se transforma, resiste e, às vezes, é ferido pela própria história que ajuda a iluminar.


Curiosidade


Poucos sabem, mas o nome grego Hypatia, escrito Ὑπατία, deriva de hypatos, termo que significa o mais elevado, o supremo, e também designava magistrados de alta posição no mundo greco-romano. É como se o próprio nome, associado a algo elevado, espelhasse a busca de Hipátia pelas alturas do cosmos e pelo nível mais alto do conhecimento filosófico.


Referências


  • Dzielska, M. (2005). Hipátia de Alexandria. São Paulo: Editora Unesp.

  • Watts, E. J. (2017). Hypatia: The Life and Legend of an Ancient Philosopher. Oxford University Press.

  • Deakin, M. A. B. (2007). Hypatia of Alexandria: Mathematician and Martyr. Prometheus Books.

  • Sócrates Escolástico. História Eclesiástica, século V.

  • Wildberg, C. (2014). Hypatia. In Stanford Encyclopedia of Philosophy.

 
 
 

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