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Maria da Penha e o Silêncio que Virou Lei

  • Foto do escritor: Sidney Klock
    Sidney Klock
  • 28 de nov.
  • 5 min de leitura

Há momentos na história de uma nação em que um gesto jurídico revela mais que palavras no papel: ele traduz um clamor ancestral, um eco coletivo de séculos de silenciamento. Em 7 de agosto de 2006, o Brasil deixou de ser indiferente. Ao sancionar a Lei nº 11.340, batizada com o nome de Maria da Penha Maia Fernandes — uma mulher que sobreviveu a tentativas de assassinato cometidas por seu próprio marido —, o país reconheceu que a dor feminina já não podia mais habitar os bastidores da vida privada.

Essa lei, no entanto, não nasceu apenas da tragédia individual. Ela foi gerada por vozes femininas que atravessaram séculos de opressão, moldadas por palavras escritas em pergaminhos e corpos marcados por silêncio. Uma longa e simbólica travessia: da "filha de Eva" medieval à mulher brasileira que, ao acionar o Estado, reconfigurou o destino de milhões.


Mulher com asas de borboleta dentro de frasco de vidro flutuante, cercada por flores e estrelas, em tons suaves.
Arte: SK

Das sombras da antiguidade à manhã do dia 7 de agosto


Para compreender a potência histórica da Lei Maria da Penha, é necessário retornar aos alicerces mais antigos da organização social. A patria potestas romana colocava mulheres sob o jugo eterno da tutela masculina. Séculos depois, o pensamento cristão medieval reforçaria essa estrutura com uma cosmologia que as via como frágeis, tentadoras, imperfeitas por natureza.

Durante milênios, o feminino foi tratado como desvio — um "segundo sexo", como diria Simone de Beauvoir. Mas a história é um rio que jamais corre em silêncio. Já no século XV, Christine de Pizan, com A Cidade das Damas, vislumbrou um espaço simbólico onde mulheres poderiam existir em plenitude. Esse chamado reverberou até as margens tropicais da América Latina.

No Brasil, o século XX viu emergir as primeiras ondas de luta feminista organizada. Bertha Lutz, Júlia Lopes de Almeida e outras pioneiras enfrentaram as muralhas do preconceito e abriram frestas por onde a luz entraria. Em 1932, conquistou-se o voto feminino. Em 1985, a primeira Delegacia da Mulher foi inaugurada. Em 1998, o caso de Maria da Penha chegou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, expondo a negligência do Estado brasileiro e exigindo reparação.

A sanção da Lei em 2006, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, foi o ápice de uma longa gestação coletiva, que envolveu articulações políticas, pressão internacional e, acima de tudo, a força das sobreviventes.


O feminino como narrativa sensível e estética de resistência


Antes de ser lei, a dor feminina foi metáfora, imagem, personagem e símbolo. A cultura e a arte brasileiras serviram como espelhos e molduras das relações de gênero. Desde os cantos trágicos das mitologias clássicas até as histórias íntimas narradas por escritoras contemporâneas, a arte denunciou, transformou e curou.

As personagens de Lygia Fagundes Telles, com suas angústias existenciais, e os textos de Conceição Evaristo, com sua potente “escrevivência”, traduzem experiências femininas complexas, que escapam aos discursos simplistas ou romantizados. São corpos de papel e tinta que antecipam as transformações jurídicas.

Ao denunciar, ressignificar e imaginar outros futuros, a arte preparou o terreno simbólico para que leis como a de Maria da Penha fossem não apenas aceitas, mas desejadas por uma sociedade em mutação.


A Lei que ousou sair do papel


A Lei Maria da Penha não é apenas um documento jurídico — é uma ruptura epistemológica no direito brasileiro. Pela primeira vez, a violência doméstica foi reconhecida como um problema estrutural e multidimensional, exigindo respostas que transcendiam o modelo punitivista tradicional.

Entre as principais inovações:


  • Medidas protetivas de urgência, com afastamento imediato do agressor e proibição de contato;

  • Criação de juizados especializados em violência doméstica e familiar;

  • Proibição de benefícios penais como a suspensão condicional do processo, reforçando a gravidade do crime;

  • Reconhecimento da violência em suas múltiplas formas: psicológica, moral, sexual, patrimonial e física.


Essas medidas romperam com o paradigma da invisibilização e passaram a tratar a violência doméstica como questão de segurança pública e de direitos humanos. Não é à toa que o Brasil se tornou referência para outros países da América Latina.

Além do mérito jurídico, a lei simboliza a vitória de uma estratégia feminista sofisticada: consórcios de ONGs, articulações legislativas e pressões internacionais se combinaram para fazer da dor uma política pública concreta.


Quando um nome vira sinônimo de proteção


Em pouco tempo, o nome “Maria da Penha” passou a ocupar um lugar semântico novo no imaginário nacional. Ele deixou de ser apenas o de uma pessoa e passou a ser símbolo de um direito. A expressão “vou usar a Maria da Penha” tornou-se escudo, alerta, promessa de justiça.

A presença da lei se irradiou para a educação, a mídia, as artes, os currículos escolares e os debates acadêmicos. Ela entrou nas novelas, nos programas de rádio, nas redes sociais, nos documentários, nos muros das periferias — e em incontáveis conversas familiares. O nome virou verbo e memória.

Mas há desafios. A efetivação da lei ainda encontra entraves estruturais e culturais: dificuldade de acesso, revitimização, resistência de autoridades locais. A violência persiste, e sua sofisticação exige vigilância constante.

Por isso, mais do que aplicada, a Lei Maria da Penha precisa ser continuamente ensinada, atualizada, cultivada — como uma flor delicada que, uma vez esquecida, pode murchar mesmo sob o sol da Constituição.


Curiosidade


Em algum arquivo clínico de Fortaleza, repousam páginas esquecidas de um caderno de controle farmacêutico. Ali estão prescrições assinadas por Maria da Penha, antes de 1983. A caligrafia é firme, quase serena. Nenhuma linha denuncia que, anos depois, aquela mesma mão seria atingida por tiros. Que aquele corpo seria jogado de uma janela. Que aquela mulher, paraplégica, transformaria seu nome em decreto.

Essas páginas silenciosas têm um peso simbólico imenso. Elas lembram que as heroínas não nascem com capa, mas com rotina. Que a história de uma nação pode mudar a partir de uma receita médica, de um laudo pericial, de uma carta enviada à OEA.

Hoje, cada mulher que aciona as medidas da Lei Maria da Penha está, de algum modo, reescrevendo aquele caderno antigo. Está continuando a caligrafia de Maria, transformando dor em dignidade, silêncio em escuta, sobrevivência em lei.


Referências


  • Revista TRT7 – O Eco Histórico da Sanção da Lei Maria da Penha

  • FOCO Publicações – Análise Crítica da Lei 11.340/2006

  • Revista Estudos Contemporâneos – Violência de Gênero e Direito Penal

  • Revista Brathair – Genealogia da Opressão Feminina na História Ocidental

  • Núcleo do Conhecimento – Responsabilidade Internacional do Brasil no Caso Maria da Penha

  • Revista Graphos – Representações Literárias do Feminino no Brasil

  • Revista da OAB-SC – Movimentos Sociais e Mudanças Legislativas

  • Revista Secretariado – Articulação Feminista e Estratégias Jurídicas

  • Scielo Brasil – Impactos e Limites da Lei Maria da Penha na Prática Judicial

  • Semantics Scholar – Instrumentos Internacionais e Direitos Humanos

 
 
 

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