O Dia da Amizade: Uma Viagem Pelos Séculos
- Sidney Klock
- 28 de nov.
- 5 min de leitura
Na noite de 20 de julho de 1969, o mundo parou. Do outro lado da tela, milhões de olhos humanos testemunhavam um homem pisar na Lua — e, entre esses olhos, estavam os de Enrique Ernesto Febbraro, um dentista argentino que viu, naquele momento, mais que um feito científico. Viu um gesto simbólico: se o ser humano era capaz de unir-se para alcançar as estrelas, por que não celebrar o que há de mais essencial entre nós — a amizade?
Nascia assim o Dia do Amigo, uma data que não surgiu de guerras ou tratados, mas de um sonho. E como todo sonho que ecoa fundo, sua origem nos leva a muito antes do século XX — até os jardins de Aristóteles, as tragédias de Eurípides, os manuscritos de Montaigne, os salmos de Agostinho.
A seguir, percorremos os caminhos históricos, filosóficos e artísticos dessa celebração, compreendendo como a amizade, esta força invisível e luminosa, moldou civilizações e ainda hoje sustenta o que há de mais humano em nós.

A Lua e o Coração: O Contexto Histórico das Datas da Amizade
O Dia do Amigo, celebrado em 20 de julho em países como a Argentina e o Brasil, nasceu do impulso sensível de Enrique Febbraro, que viu na chegada do homem à Lua uma metáfora de união planetária. Inspirado, enviou mais de mil cartas propondo que esse dia fosse dedicado à amizade — e a resposta foi comovente. O gesto simples plantou uma semente que floresceria em vários países da América Latina.
Mas a proposta de celebrar a amizade já havia surgido antes. Em 1958, o médico paraguaio Ramón Artemio Bracho criou a Cruzada Mundial da Amizade, durante um jantar com amigos em Puerto Pinasco. O resultado? A fundação do Dia Mundial da Amizade, em 30 de julho — data reconhecida oficialmente pela ONU em 2011 como o Dia Internacional da Amizade, com a esperança de promover a paz por meio dos vínculos humanos.
Não se trata apenas de datas. Trata-se de símbolos. De momentos em que a humanidade, em meio a suas guerras e avanços tecnológicos, parou para lembrar de algo essencial: os laços invisíveis que nos mantêm próximos, mesmo quando tudo nos separa.
A Amizade na Filosofia: Virtude, Política e Salvação
Aristóteles e a Philia: A Alma em Duas Vidas
Em sua “Ética a Nicômaco”, Aristóteles define a amizade (philia) como "uma alma habitando dois corpos". Para ele, a amizade era o alicerce da pólis, da vida política, da felicidade humana. Ele distinguia três tipos: a baseada na utilidade, no prazer e na virtude — sendo esta última a mais elevada, pois nela o outro é amado pelo que é, e não pelo que oferece.
Essa ideia ressoou através dos séculos, e encontra eco até mesmo nos tempos de redes sociais: qual tipo de amizade estamos cultivando? Aquela que nos convém ou aquela que nos transforma?
Roma e Cícero: A Amizade como Cimento da República
Para Cícero, no tratado De Amicitia, a amizade era reflexo da virtude. "Quem tem um verdadeiro amigo, tem outro eu." Mais que laço pessoal, era uma aliança cívica — base de confiança, fidelidade e lealdade entre cidadãos. Um ideal que hoje poderia nos inspirar a repensar nossos vínculos sociais em tempos de polarização e desconfiança.
Agostinho e Tomás de Aquino: O Elo Espiritual
Santo Agostinho deu à amizade uma dimensão espiritual: só em Deus ela seria plena, pois “não se perde o amigo, quem ama todos naquele que não se perde”. Tomás de Aquino, séculos depois, consolidaria essa visão cristã com rigor escolástico: a caridade seria, na verdade, a amizade entre Deus e os homens. Nasce aí uma ponte entre filosofia e fé, razão e emoção, que fez da amizade uma virtude teologal, não apenas ética.
A Amizade como Arte: Montaigne, Dante, Klimt
Montaigne e La Boétie: A Força Inexplicável
No Renascimento, Michel de Montaigne nos presenteia com um dos testemunhos mais belos da amizade: sua relação com Étienne de La Boétie. Ele a descreve como “porque era ele, porque era eu” — uma comunhão que escapava a definições. Nessa concepção moderna, a amizade já não serve ao Estado nem à moral, mas sim à alma — um fim em si mesma.
Dante e Virgílio: A Amizade que Guia pela Escuridão
Em A Divina Comédia, Dante é guiado por Virgílio através dos infernos. O gesto é simbólico: é a amizade — o afeto, o respeito, a confiança — que nos guia nos momentos mais sombrios da existência. Depois, é Beatriz, a musa celeste, quem o conduz ao Paraíso. O caminho é feito de relações — não apenas de fé ou penitência.
Arte Moderna: Klimt, Schiele e a Intimidade Criativa
Nas artes visuais, vemos amizades que desafiam o tempo e os estilos. Gustav Klimt e Egon Schiele, por exemplo, mantinham uma relação de admiração profunda. Assim como Picasso e Matisse, amigos e rivais, que reconheceram no outro um espelho criativo. A amizade como impulso estético, confronto fecundo, espelho do eu — eis um tema que a arte nos revela com intensidade única.
Impacto Cultural: Da Mitologia Grega à ONU
Orestes e Pílades: A Amizade como Lealdade Mítica
Na mitologia grega, a história de Orestes e Pílades simboliza a fidelidade que resiste ao destino. Amizade que enfrenta deuses, fúrias e exílios. Esse mito influenciou a tragédia clássica e moldou o imaginário ocidental sobre o amigo como aquele que não abandona — mesmo diante da morte.
Música, Literatura e Política: O Efeito Transversal da Amizade
De Haydn e Mozart a Mario de Andrade e Oswald de Andrade, a amizade é fonte de inovação cultural. Nas cartas de escritores, nas composições compartilhadas, nos movimentos artísticos de vanguarda, a amizade emerge como força criadora — e não apenas afetiva. Ela é contexto, estímulo, crítica e apoio.
A ONU e a Amizade como Ponte entre Culturas
Ao reconhecer oficialmente o Dia Internacional da Amizade, a ONU transforma esse sentimento em instrumento político: uma ponte entre povos, uma pedagogia da paz. A resolução fala diretamente aos jovens — futuros líderes — e propõe a amizade como valor que transcende culturas, raças, religiões.
Curiosidade: O Paradoxo da Universalidade
E aqui está a curiosidade que atravessa todos os séculos: quanto mais se universaliza o ideal da amizade, mais sentimos a falta do encontro íntimo, do gesto particular, da escuta silenciosa. A amizade é hoje celebrada em datas globais, mas talvez sua essência permaneça inalterada: ela nasce no olhar direto, no silêncio partilhado, na vulnerabilidade entre dois.
Como disse Montaigne: a verdadeira amizade "não tem outra ideia senão ela mesma". E talvez, como sonhou Febbraro ao ver o homem na Lua, o destino da amizade seja sempre o mesmo: unir o que o mundo insiste em separar.
Referências
Aristóteles, Ética a Nicômaco
Cícero, De Amicitia
Santo Agostinho, Confissões
Tomás de Aquino, Suma Teológica
Michel de Montaigne, Ensaios
Dante Alighieri, Divina Comédia
Organização das Nações Unidas, Resolução A/65/L.72
Documentos da Cruzada Mundial da Amizade (1958)
Cartas de Enrique Febbraro (1969)
Silviano Santiago, O Cosmopolitismo do Pobre
Museu de Belas Artes de Viena (Klimt e Schiele)
Arquivos da UNESCO sobre cultura de paz



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