O Dia do Montanhista: Entre Céus e Abismos
- Sidney Klock
- 28 de nov.
- 5 min de leitura
Entre o céu e a rocha, onde o vento desenha melodias ancestrais e o tempo parece suspenso, pulsa o coração do montanhista. O Dia do Montanhista, embora celebrado em diferentes datas ao redor do mundo, é mais do que uma efeméride: é a celebração de tudo aquilo que em nós mira o alto, busca o impossível, dialoga com o sagrado e reencontra a própria humanidade. Este artigo mergulha nas camadas históricas, artísticas e culturais dessa data, com a leveza poética daqueles que escalam não apenas montanhas, mas os próprios limites do ser.

Das Moradas dos Deuses ao Espírito Esportivo
A visão das montanhas como domínios inacessíveis permeava a Antiguidade. O Monte Olimpo era, para os gregos, endereço dos deuses, inalcançável pela simples condição humana (Cf. Monte Olimpo: entre mito e realidade, Museu Nacional de Atenas). Na Roma Antiga, as montanhas eram obstáculos épicos: a travessia dos Alpes por Aníbal tornou-se lenda e advertência sobre o risco e a persistência humana (Arquivo Histórico de Cartago).
Durante a Idade Média, a relação se tornava sombra: “cumes guardados por dragões”, temidos e proibidos, como no episódio em que os magistrados de Lucerna baniram monges do Monte Pilatus em 1387 (Arquivo Diocesano de Lucerna).
O Renascimento, no entanto, trouxe outro olhar. Em 1336, o poeta Francesco Petrarca subiu deliberadamente o Mont Ventoux. Foi, segundo ele próprio, movido “pelo desejo de admirar lugares famosos por sua altitude” (De Vita Solitaria, carta de Petrarca). Ali, no alto, encontrou a metáfora que norteia a escalada até hoje: chegar ao topo da montanha é, ao fim, encontro consigo mesmo e com o infinito.
A modernidade consagrou conquistas: o Mont Blanc, com Jacques Balmat e Michel-Gabriel Paccard em 1786, rompeu definitivamente a barreira simbólica entre homem e montanha. Era o nascimento do montanhismo moderno (Musée d’Histoire Naturelle de Genève).
No Brasil, as primeiras subidas registradas à Pedra da Gávea e ao Pão de Açúcar misturam-se a gestos de afirmação nacionalista e curiosidade científica. Mas foi em 21 de agosto de 1879 que o farmacêutico Joaquim Olímpio Carmeliano de Miranda liderou a histórica ascensão ao Marumbi, marco fundacional do montanhismo esportivo brasileiro (Museu do Montanhismo Edson DuBois Struminski).
Quando a Montanha Entra na Poesia e na Arte
Montanhas inspiram. Da clássica pintura de Caspar David Friedrich (“O Caminhante sobre o Mar de Névoa”, Galeria Hamburger Kunsthalle) aos versos de Mario Quintana (“As montanhas do sul”, Biblioteca Nacional), o perfil montanhoso serve de símbolo para o sublime e o insondável na alma humana.
O gesto de escalar invade a literatura com Lionel Terray em “Os conquistadores do inútil”, obra referencial do pós-guerra europeu, onde o alpinismo é tratado como metáfora da busca pelo essencial que escapa ao pragmatismo. Poetas contemporâneos enxergam a escalada como via de conhecimento: “Caminho para dentro quando galgo para o alto”, escreve Sophia de Mello Breyner (Obra Poética, Biblioteca Nacional de Portugal).
Fotógrafos, escultores e cineastas projetam na verticalidade dos cumes um convite à contemplação, mas também ao questionamento: “Por que subir?”, pergunta Edward Whymper, ecoando Mallory – e o próprio ato vira arte, performance diante da natureza e dos limites da existência (Royal Geographical Society).
Quem Escalou para Além das Rochas
O montanhismo não é mérito de solitários, mas sim das comunidades que, unidas por cordas e sonhos, plasmaram as trilhas que hoje dispensam mapas. Da ascensão de Petrarca em 1336, registrada em carta e reverenciada em tratados filosóficos, passando pelo pioneirismo científico de Horace-Bénédict de Saussure no século XVIII, até os guias anônimos dos Alpes, que transformaram o risco em profissão e tradição.
No Brasil, cada cume conquistado guarda o nome daqueles que desafiaram o impossível. O episódio da inglesa Henrietta Carsteirs, que em 1817 subiu o Pão de Açúcar e hasteou sua bandeira, gerou resposta patriótica imediata, numa antecipação lúdica dos ritos nacionais.
O Dedo de Deus, em 1912, foi vencido por cinco brasileiros sem técnica formal européia mas com inventividade única: grampos de ferreiro, cordas de sisal, pirâmides humanas – uma criatividade tipicamente tupiniquim que transcendeu a rocha e virou símbolo (Arquivo do Clube Excursionista Brasileiro).
Essas trajetórias são celebradas em museus e bibliotecas, mas sobretudo nos relatos orais que percutem nos abrigos e trilhas. São gestos que celebram o coletivo, a transmissão de saberes e a doação silenciosa de experiências, desde a fundação do Centro Excursionista Brasileiro (1919) até as conquistas contemporâneas nos Himalaias por Mozart Catão e Waldemar Niclevicz em 1995.
O Eco das Montanhas no Corpo e na Alma Social
O impacto cultural do montanhismo vai além do esporte. É linguagem, ritual, legado ecológico, imaginário coletivo. Encontram-se vestígios da sensibilidade do montanhista em festas populares, na música, no cinema (Cine Montanha), e na ética ambiental de toda uma geração que aprende com a verticalidade o valor da preservação.
Instituições como o Museu do Montanhismo Edson DuBois Struminski (Santa Catarina) ou o Museu do Montanhismo Militar (São João del Rei) não apenas catalogam objetos; preservam a aura singular do impossível realizado. Em arquivos históricos e periódicos reconhecidos, o estudo do montanhismo se desdobra em múltiplas dimensões: perfil psicológico (Universidade do Porto), legado de risco, coragem e superação (UFRGS, Porto).
O Dia do Montanhista converge essas tradições em celebrações que lembram tanto a façanha física quanto o rito espiritual: a cada 21 de agosto, no Brasil, relembramos não só feitos históricos, mas a própria capacidade de sonhar do ser humano diante do abismo e da altitude.
Curiosidade
Há um segredo sussurrado entre os picos: as montanhas, por mais imponentes e eternas, nunca são as mesmas de um dia para o outro. Tal como a alma do montanhista, elas se transfiguram – na névoa incerta, no brilho do gelo, no eco da voz que se perdeu. O montanhismo é, paradoxalmente, das práticas mais coletivas dentre as solitárias: por trás de cada pegada, vibra o passo de todos que vieram antes. E ao final de cada ascensão, permanece uma pergunta irrespondida, feita em todas as línguas, através de séculos: E se eu ousasse mais uma vez?
Referências
Petrarca, Francesco. “De Vita Solitaria” (Carta sobre a ascensão ao Mont Ventoux), Biblioteca Nacional Italiana.
Museu Nacional de Atenas. Acervo sobre Monte Olimpo e mitologia.
Arquivo Histórico de Cartago. Documentos sobre Aníbal e os Alpes.
Arquivo Diocesano de Lucerna. Relato sobre o Monte Pilatus (1387).
Museu do Montanhismo Edson DuBois Struminski. Acervo histórico.
Musée d’Histoire Naturelle de Genève. Dossiê Mont Blanc 1786.
Royal Geographical Society. Arquivo de expedicionários (Whymper, Saussure).
Biblioteca Nacional do Brasil. Documentos sobre a ascensão ao Marumbi (1879).
Arquivo do Clube Excursionista Brasileiro. Relatos sobre o Dedo de Deus.
Biblioteca Nacional de Portugal. Obra Poética de Sophia de Mello Breyner.
Revista Sociologia da Universidade do Porto. “Do risco no Alpinismo de alta Montanha” (Artigo científico).
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Dissertação: “O Alpinismo de Alta Montanha: um estudo de revisão de literatura”.
Northwest Mountaineering Journal. Anais e artigos.
Biblioteca Nacional. “As montanhas do sul”, Mario Quintana.
Galeria Hamburger Kunsthalle. “O Caminhante sobre o Mar de Névoa”, Caspar David Friedrich.
Que cada celebração do Dia do Montanhista seja a renovação desse eterno chamado ao alto, e que o eco das alturas inspire sonhos tão grandes quanto a própria montanha.



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