O Renascimento: Quando a Arte Encontrou Seu Palco
- Sidney Klock
- 28 de nov.
- 7 min de leitura
Como uma semente dourada plantada no coração de Milão, em 3 de agosto de 1778, um momento supremo cristalizou-se na história cultural europeia — não apenas como uma inauguração teatral, mas como o nascimento simbólico de um novo templo da arte, onde a civilização clássica abraçava o refinamento setecentista numa síntese de beleza eterna.

O Palco Sagrado: Giuseppe Piermarini e a Arquitetura dos Sonhos
Nas ruínas da igreja medieval de Santa Maria alla Scala, Giuseppe Piermarini (1734-1808) ergueu um templo neoclássico que transcenderia sua época. O arquiteto, formado na escola de Luigi Vanvitelli em Caserta, trouxe para Milão os ideais estéticos que conectavam a grandeza romana à elegância do Século das Luzes.
O Teatro alla Scala não surgiu do acaso — nasceu das cinzas, literalmente. Em 26 de fevereiro de 1776, o antigo Teatro Regio Ducale foi consumido pelas chamas. A imperatriz Maria Teresa da Áustria, mecenas iluminada, encomendou a Piermarini uma obra que refletisse não apenas o poder imperial, mas os novos ventos culturais que varriam a Europa. O arquiteto respondeu com uma criação que Daniel Barbaro descreveria como "a síntese perfeita entre razão e beleza".
A fachada, aparentemente modesta quando vista das ruas milanesas da época, escondia uma revolução arquitetônica. Piermarini projetou não apenas um teatro, mas um microcosmo social onde a hierarquia aristocrática se espelhava na disposição dos camarotes, enquanto a acústica democrática permitia que até os espectadores do loggione — a galeria dos menos favorecidos — participassem da comunhão estética.
Antonio Salieri: O Herdeiro de Gluck e Arquiteto Musical da Europa
A escolha de Antonio Salieri (1750-1825) para compor a ópera inaugural não foi casual — foi providencial. Christoph Willibald Gluck, o reformador da ópera, havia sido convidado originalmente, mas recusou por estar envolvido com Iphigénie en Tauride para a Ópera de Paris. Em seu lugar, recomendou seu pupilo predileto, aquele jovem compositor italiano que havia assimilado perfeitamente os ideais da reforma operística.
Salieri não era um simples substituto — era um cosmopolita musical genuíno. Tendo chegado a Viena aos 16 anos sob a proteção de Florian Leopold Gassmann, tornou-se em 1774, aos 24 anos, diretor da ópera italiana na corte dos Habsburgos. Sua formação única o habilitava a compor em italiano, francês e alemão, fazendo dele o perfeito intérprete dos ideais culturais pan-europeus da época.
A relação entre Salieri e Mozart, tão distorcida pela mitologia posterior, era na verdade de respeito profissional mútuo. O próprio Mozart enviou seu filho Franz Xaver Wolfgang como aluno a Salieri, e documentos históricos atestam que Salieri introduziu Lorenzo da Ponte a Mozart, contribuindo indiretamente para o nascimento de obras-primas como Le nozze di Figaro e Don Giovanni.
Mattia Verazi e o Libretto: A Poesia do Poder e da Paixão
Mattia Verazi (?-1794), o librettista de Europa riconosciuta, representava a nova geração de poetas operísticos que se afastavam gradualmente do modelo metastasiano para abraçar as inovações dramáticas propostas pela reforma de Gluck. Seu texto, baseado na Genealogia degli dei de Boccaccio, não era apenas uma recontagem do mito clássico — era uma sofisticada reflexão sobre poder, identidade e reconciliação.
O mito de Europa, princesa fenícia raptada por Zeus transformado em touro branco, ganhava nas mãos de Verazi uma dimensão política contemporânea. A história se passava em Tiro, na Fenícia, onde Europa, agora casada com Astério, rei de Creta, retornava para reivindicar o trono de seu primo Semele. O título "Europa Reconhecida" sugeria não apenas o reconhecimento da identidade da protagonista, mas uma metáfora sobre a própria Europa setecentista — um continente que se reconhecia através da arte e da cultura.
Verazi ousou quebrar convenções da opera seria tradicional. Introduziu um assassinato em cena — algo inédito no gênero sério — e estruturou finais estendidos em ambos os atos, prática típica da opera buffa. Musicalmente, exigiu de Salieri um virtuosismo vocal extraordinário: os papéis de Europa e Semele alcançavam o fá sustenido agudo, nota que poucos sopranos da época dominavam.
A Síntese Artística: Entre Gluck e o Futuro
Europa riconosciuta representava o momento perfeito entre tradição e inovação. Salieri havia absorvido profundamente as lições de Gluck sobre a primazia do drama musical, mas mantinha suficiente elegância italiana para conquistar o público milanês. A orquestra, descrita em carta de Pietro Verri a seu irmão Alessandro, compunha-se de 30 violinos, 8 violas, 13 violoncelos e contrabaixos, 2 cravo, além dos sopros tradicionais — uma formação grandiosa para os padrões da época.
A ópera seguia os preceitos da reforma: música a serviço da poesia, eliminação de ornamentos supérfluos, naturalidade de expressão combinada com verdade emocional. Mas Salieri introduziu inovações próprias: coros integrados à ação dramática, uso de recitativo accompagnato para suavizar transições, e uma escrita vocal que transformava os cantores em "atletas da beleza", como observou um cronista da época.
O Impacto Cultural: Milão como Nova Atenas
A inauguração do Teatro alla Scala em 3 de agosto de 1778 marcou simbolicamente o nascimento de Milão como centro cultural europeu. Pietro Verri, cronista da época, escreveu: "O auditório, com suas seis ordens de camarotes, é magnífico. É possivelmente o maior teatro da Itália, do mundo. É impossível imaginar algo mais grandioso, solene e novo".
Stendhal, o futuro autor de A Cartuxa de Parma, também presente na inauguração, relatou: "É impossível imaginar algo mais grandioso, solene e novo". O teatro não era apenas um edifício — era a materialização dos ideais iluministas sobre o papel civilizador das artes.
A escolha do mito de Europa como tema inaugural carregava significado político profundo. Em 1778, a Europa vivia transformações que prenunciavam as revoluções que viriam. Maria Teresa da Áustria, que havia patrocinado a construção do teatro, representava o despotismo esclarecido — a tentativa de conciliar autoridade tradicional com racionalidade moderna. Europa, a princesa fenícia que se tornara rainha de Creta, simbolizava essa síntese entre Oriente e Ocidente, tradição e inovação.
A Preservação da Memória: O Silêncio de Dois Séculos
Ironicamente, após sua estreia triunfal, Europa riconosciuta desapareceu dos palcos por 226 anos. Somente em 7 de dezembro de 2004, sob a batuta de Riccardo Muti, a ópera retornou ao Teatro alla Scala para marcar a reabertura após três anos de renovação conduzida pelo arquiteto Mario Botta.
Este longo silêncio refletia as transformações do gosto musical europeu. Com o Romantismo nascente, as óperas de Salieri — representantes de um classicismo cosmopolita — foram eclipsadas pelo nacionalismo musical emergente. O mito criado em torno da suposta rivalidade com Mozart, perpetuado pela peça Amadeus de Peter Shaffer, completou o ostracismo histórico.
Mas em 2004, quando Diana Damrau cantou o papel de Europa com a mesma virtuosidade exigida em 1778, quando os cenários de Pier Luigi Pizzi recriaram a grandeza visual setecentista, quando a direção de Luca Ronconi restituiu ao libreto sua dignidade dramática, o Teatro alla Scala reencontrou suas origens. A ópera de Salieri revelou-se não uma relíquia histórica, mas uma obra viva, capaz de emocionar plateias contemporâneas.
Ecos na Eternidade: O Legado de um Momento
O que aconteceu em 3 de agosto de 1778 transcendeu o evento teatral para tocar o metafisical. Naquela noite, quando as velas de cristal da luminária central (ainda não existia o famoso lustre que viria em 1823) iluminaram o auditório recém-inaugurado, quando Maria Balducci entoou as primeiras notas de Europa, quando Gaspare Pacchiarotti, o castrato, deu voz ao rei Astério, algo de eterno se materializou no tempo.
Piermarini havia criado não apenas um teatro, mas um instrumento de transformação social. Salieri não compusera apenas uma ópera, mas uma ponte sonora entre mundos. Verazi não escrevera apenas um libreto, mas um manifesto sobre a condição humana. Juntos, arquiteto, compositor e poeta haviam dado à luz uma síntese artística que prefigurava o que a Europa se tornaria — um continente unido não pela força, mas pela beleza.
O Teatro alla Scala tornou-se, nas décadas seguintes, o templo onde Rossini faria triunfar La pietra del paragone (1812), onde Verdi estrearia Otello (1887) e Falstaff (1893), onde Toscanini conduziria seus concertos memoráveis. Mas tudo começou naquela noite de agosto, quando Europa — a princesa fenícia que deu nome ao continente — reconheceu sua verdadeira identidade não através da força ou da política, mas através da arte.
Curiosidade
Há algo profundamente poético no fato de que a Europa do século XXI, buscando sua identidade numa União Europeia em constante transformação, tenha escolhido justamente a imagem de Europa sobre o touro para adornar suas moedas de dois euros, cunhadas primeiro pela Grécia. É como se o mito inventado por Verazi e musicado por Salieri houvesse profetizado algo essencial: que a verdadeira unidade europeia não viria jamais da conquista ou da dominação, mas da capacidade de reconhecer — riconoscere — na diversidade de suas tradições culturais uma harmonia mais profunda.
Quando Giuseppe Piermarini desenhou as curvas do auditório da Scala, quando escolheu o mármore de Candoglia para as colunas, quando calculou matematicamente a acústica perfeita, ele estava na verdade projetando um instrumento capaz de transformar sons em emoções, vozes em eternidade, mitos em verdades. E talvez seja exatamente isso o que torna o 3 de agosto de 1778 tão especial — foi o dia em que a arte encontrou seu palco não apenas no sentido literal, mas no sentido cósmico: um lugar onde o efêmero se transfigura em permanente, onde a beleza mortal aspira à imortalidade, onde a voz humana toca, por instantes fugidios mas inesquecíveis, a música das esferas.
Referências
Teatro alla Scala - Arquivo histórico oficial do teatro, documentação sobre inauguração e primeiras temporadas (teatroallascala.org)
Google Arts & Culture - "Architecture: from Piermarini to Botta", coleção digital sobre evolução arquitetônica do teatro
Museo Teatrale alla Scala - "240 years of Teatro alla Scala, from Piermarini to Botta", exposição permanente sobre história do teatro
Cambridge University Press - "Italian opera in the eighteenth century", Chapter 8, estudos sobre ópera seria e reformas gluckianas
University College Dublin - "Antonio Salieri's Musical Recycling: Europa Riconosciuta, Tarare", análise musicológica académica
Academia.edu - "Preliminary Observations on the Ballo Primo of Europa Riconosciuta by Antonio Salieri", estudos coreográficos setecentistas
JSTOR Academic Database - "The Eighteenth-Century Diaspora of Italian Music and Musicians", contexto histórico-musical
Warner Classics - Gravação integral de "L'Europa riconosciuta" dirigida por Riccardo Muti (2004), documentação musicológica
IMSLP Petrucci Music Library - Partituras originais e estudos sobre Europa riconosciuta de Antonio Salieri
Brepols Publishers - "Pietro Metastasio's Operatic Storm", estudos sobre libretistas setecentistas e reforma da ópera



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