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República Juliana, Alma Poética de uma Revolução Singular

  • Foto do escritor: Sidney Klock
    Sidney Klock
  • 29 de jul.
  • 6 min de leitura

Quem visita Laguna, em Santa Catarina, enfrenta ao pôr-do-sol aquela luz que incendeia lagoas e derrama silêncio entre sambaquis e velhas ruas de pedra. É assim, quase encantados, que nos aproximamos dos acontecimentos da República Juliana — um episódio que, mesmo breve, reverbera como poesia no imaginário brasileiro. Sob o reflexo trêmulo do passado, desenham-se as cores de uma revolução: homens e mulheres comuns, estrangeiros e párocos, pescadores açorianos e lanchões épicos, todo um caleidoscópio onde se cruzam história, arte e identidade. Este artigo é convite — respiração funda — para desvelar uma das páginas mais sensíveis e marcantes do nosso Sul.


Arte: SK
Arte: SK

Raízes profundas, sonhos de liberdade


Antes da República: sambaquis, bandeirantes e açorianos


Muito antes de Laguna erguer sua bandeira republicana, os sambaquieiros moldaram a paisagem, deixando vestígios milenares como o Sambaqui Cabeçuda. No século XVII, o bandeirante Domingos de Brito Peixoto fundava ali a vila de Santo Antônio dos Anjos, cruzando manguezais e dores – inclusive com a morte de escravizados e familiares em sua travessia épica. No século XVIII, os casais açorianos traziam consigo o labor das pequenas propriedades, a arquitetura de pedras e cal das conchas e uma nova vida cultural banhada por festas, música e culinária.


O século XIX: ventos modernos sobre Santa Catarina


No início do século XIX, Laguna despontava como centro portuário e de trocas, ligada ao Rio Grande do Sul pelo comércio e pelos vínculos familiares. Quando a Revolução Farroupilha eclode em 1835, a vila sente a correnteza desses ventos rebeldes: charqueiros, pescadores e comerciantes começam a questionar a ordem imperial, instaurando um clima de expectativa e instabilidade.


A audácia dos lanchões, a união dos sonhos


Em junho de 1839, uma façanha militar — o transporte terrestre dos lanchões Seival e Farroupilha — sela a aliança simbólica e prática entre os farrapos rio-grandenses e os catarinenses rebeldes. Entre as dunas, bois arrastam barcos em gesto hercúleo, quase mítico, costurando o improvável ao factual. Pouco depois, na madrugada de 22 de julho, as forças republicanas entram em Laguna, que se rende sem grande resistência ao ideal republicano.


O nascimento da República Juliana


Em julho de 1839, no prédio atual do Museu Anita Garibaldi, proclama-se a República Catharinense Livre e Independente, conhecida como República Juliana. A nova república — inspirada nos lemas iluministas adaptados ao contexto brasileiro ("Liberdade, Igualdade, Humanidade") — une-se à República Rio-Grandense, promete eleições, abre o porto ao mundo e constrói, com pouca matéria-prima e muito sonho, um breve laboratório político na ponta do Atlântico Sul.


Da paisagem à literatura, Laguna como expressão


A arquitetura: calcário dos sambaquis, memória nas paredes


O núcleo histórico de Laguna reúne mais de seiscentos prédios tombados, muitos erguidos com cal extraída dos antigos sambaquis – elo palpável entre idades remotas e a república do século XIX. Casarios coloniais, chafarizes e igrejas constituem um patrimônio arquitetônico que fala tanto do cotidiano açoriano quanto do ímpeto dos insurgentes do século das luzes.


As artes e a literatura: mito, mulheres e imaginário coletivo


A República Juliana inspirou obras de peso na literatura nacional. José de Alencar, em “O Gaúcho”, trata dos farroupilhas; Tabajara Ruas e Letícia Wierzchowski, em romances contemporâneos, redescobrem Anita Garibaldi e mergulham na ambiguidade dos heróis. Anita, tornada símbolo revolucionário — entre a paixão e a ação, entre os pampas e a Itália — é celebrada na toponímia, nas esculturas de museus e nos espetáculos anuais que encenam a tomada de Laguna.


Expressão popular: festas, cantos, cores


Do Divino Espírito Santo à culinária de mandioca e peixe salgado, das cantorias improvisadas aos bailes onde soldados misturam-se a pescadores, a arte em Laguna sempre foi vivência coletiva. A teatralização da história — como nos festivais que reencenam, com luz e emoção, a Tomada de Laguna — sustenta a ponte entre tradição e memória recente.


Pessoas, ideias, progressos


Protagonistas: gente de carne, verso e lenda


  • Giuseppe Garibaldi: O jovem revolucionário italiano, que em Laguna conhece Anita e ali inicia a lenda do “herói de dois mundos”.

  • Anita Garibaldi: A mulher rebelde, corajosa, decidida, que desafia papéis e cruza oceanos atrás do amor e da liberdade.

  • David Canabarro: Líder farroupilha, presidente da república recém-proclamada, símbolo da mistura entre tradição e renovação política.

  • Padre Vicente Cordeiro: Pároco de Enseada de Brito, une púlpito e tribuna, tornando-se presidente e encarnando a rara aliança entre fé e república.

  • John Griggs (João Grandão): O mercenário americano, capitão do Seival, expressão das redes internacionais revolucionárias.


Fatos institucionais e sociais


A República Juliana busca inovar: proclama-se livre, adota uma bandeira própria (em variações verde, amarela e branca), inaugura decretos de caráter democrático (ainda limitados pela realidade censitária do Império) e tenta encaixar o sul catarinense no circuito comercial global. Surgem tentativas de eleições, nova organização municipal e forte presença do debate público — mesmo em clima de conflito.


Cotidiano entre sonhos e pragmatismos


A presença de mil soldados farrapos em vila com pouco mais de doze mil habitantes testa os limites da hospitalidade e os estoques de farinha. As rápidas exigências logísticas, os bloqueios navais, as insurreições em comunidades vizinhas (Imaruí, Tubarão) revelam, no cotidiano, as tensões entre utopia e sobrevivência. Há relatos de festas, improvisos culturais, mas também da dureza da vida, dos protestos e das repressões. O ideal de liberdade revela-se tanto no entusiasmo dos primeiros dias quanto na resistência popular diante das privações.


Ecos, identidades, memórias


A identidade lagunense e brasileira


A passagem da República Juliana, ainda que breve (de 24 de julho a 15 de novembro de 1839), funda um mito regional duradouro. Laguna aprende a narrar a si mesma como lugar de resistência, miscigenação de tradições e palco de lutas por autonomia. O lema “Liberdade, Igualdade, Humanidade” irradia um sentido ético e filosófico, promovendo debates que, no Brasil contemporâneo, ainda ecoam nos pleitos por participação e federalismo.


A influência transnacional


Garibaldi e Anita projetam Laguna para além das fronteiras nacionais. Suas trajetórias — da revolução catarinense ao Risorgimento italiano — transformam exilados e insurgentes em personalidades universais. O local, que por vezes parece periférico, revela-se centro de circulação de ideias, tecnologias, amores e conflitos globais.


O patrimônio material e imaterial


Museus, como o Anita Garibaldi, abrigam espólios, cartas, peças de vestuário e armas da república. Arquivos e bibliotecas guardam documentos originais, acervos digitais e crônicas fundadoras. A conservação urbana dos casarios açorianos e a teatralização dos eventos históricos ajudam a manter a memória pulsante, não apenas para turistas, mas como parte viva da educação local e nacional.


Curiosidade


Entram as noites frias sobre a lagoa, a bruma encobre as velas dos barcos e, entre os pescadores, corre a lenda: Anita Garibaldi, depois de sobreviver a batalhas, fugas e mares, só encontrou repouso definitivo após sete sepultamentos na Itália. Sua peregrinação post mortem, iniciada numa vala com pressa, transformou-se em mito internacional — símbolo tanto da errância revolucionária quanto da força feminina. As cidades de Laguna e Ravenna, unidas em memória, celebram todos os anos não apenas uma heroína, mas a ideia de que certos ideais, como certos amores, continuam a renascer sob novas formas.


Referências


  • Museu Anita Garibaldi (Laguna, SC): acervo histórico, artefatos da República Juliana, documentação original.

  • Arquivo Público Municipal de Laguna – Casa Candemil: inventários, cartas, decretos, registros municipais de 1839.

  • Instituto Histórico de Laguna: crônicas, estudos regionais, mapeamentos sobre personagens e contexto.

  • IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional: inventário arquitetônico do centro histórico de Laguna.

  • Biblioteca Nacional (Brasil): livros raros, periódicos, documentos digitalizados sobre Farroupilha e Laguna.

  • Fundação Catarinense de Cultura: acervos expositivos e digitais sobre patrimônio local, festas açorianas.

  • Museu Arqueológico de Sambaqui de Joinville (SC): pesquisas sobre sambaquieiros, exposições arqueológicas.

  • Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC): centro de documentação, teses acadêmicas sobre história catarinense.

  • Schmitz, P.I. “Os Sambaquieiros do Litoral Brasileiro”, Revista do Museu Paulista.

  • Souza, S.J.M. “Domingos de Brito Peixoto e a Fundação de Laguna”, IHGRS.

  • Saldanha, C.T. “A República Juliana: Um Estudo Histórico”, UFSC.

  • Guardia, L.A. “O Transporte dos Lanchões Farroupilhas”, Revista História Catarinense.

  • Rossetti, L. Relatórios ao governo da República Juliana, Arquivo Público Municipal de Laguna.

  • Ruas, T. “Os Varões Assinalados”, L&PM Editores.

  • D’Aguiar, L. “Ideais Iluministas no Brasil”, FGV.

  • Halbwachs, M. “A Memória Coletiva”, São Paulo.

  • Nora, P. “Entre Memória e História”, Revista Topoi.

  • Instituto Anita Garibaldi (Ravenna, Itália): documentação biográfica de Anita Garibaldi.

  • Museu do Risorgimento (Itália): acervos sobre Anita e Giuseppe Garibaldi, contexto internacional das revoluções do século XIX.

 
 
 

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