Tratado de Tordesilhas: Quando o Mundo Foi Traçado com Régua e Fé
- Sidney Klock
- 28 de nov.
- 4 min de leitura
Era uma época em que o céu guiava os navios e a fé guiava os reis. Um tempo em que os oceanos ainda sussurravam segredos ao vento, e cada vela branca no horizonte carregava promessas de ouro, especiarias — ou glória eterna. No ano de 1494, dois impérios que olhavam para além do fim do mar decidiram o impossível: dividir o mundo.
O Tratado de Tordesilhas foi mais do que um acordo diplomático. Foi um ato de imaginação imperial, uma régua sobre o desconhecido, traçada com tinta, cruz e ambição. Nele, Portugal e a Coroa de Castela (futura Espanha) não dividiram apenas terras — dividiram futuros, línguas, culturas e cicatrizes.
Mas o que exatamente foi esse tratado? O que levou dois reinos cristãos a arriscar o equilíbrio do mundo em uma linha invisível? E o que permanece dessa decisão, mais de 500 anos depois?

O mundo em ebulição e os olhos no mar
O final do século XV foi um momento limiar da história. A Idade Média morria aos poucos, e o Renascimento pulsava com novas ideias, mapas e descobertas. A queda de Constantinopla em 1453 havia fechado as portas da Rota da Seda para o Ocidente cristão, e os olhos de Portugal e Castela voltaram-se ao Atlântico.
Portugal, sob o impulso do Infante Dom Henrique, já havia avançado ao longo da costa africana, mapeando ventos, estrelas e portos. Castela, mais recente nas lides oceânicas, apostou todas as suas fichas no genovês Cristóvão Colombo. Em 1492, Colombo chega às Américas, acreditando ter encontrado uma nova rota para as Índias. A notícia correu como pólvora.
Era preciso decidir: quem teria direito às terras recém-descobertas? Quem governaria os mundos além do horizonte?
Régua, cruz e espada
Em 7 de junho de 1494, após intensas negociações, os representantes dos Reis Católicos de Castela (Isabel e Fernando) e do rei João II de Portugal assinaram o Tratado de Tordesilhas na vila castelhana de mesmo nome.
O acordo estabelecia uma linha imaginária a 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde. Tudo o que estivesse a leste dessa linha seria território português; a oeste, território castelhano. O mundo — ainda desconhecido, insondável e inabitável aos olhos europeus — foi, enfim, partilhado por decreto.
Essa linha atravessava o futuro Brasil, o que explicaria, anos depois, a presença portuguesa na América do Sul, mesmo em um continente "descoberto" por espanhóis.
Uma bênção papal sobre a ambição
A partilha do mundo não poderia ocorrer sem a chancela divina. E assim, o papa Alexandre VI — de origem espanhola — foi chamado a abençoar o gesto.
Pouco antes do Tratado, ele já havia emitido a famosa bula Inter Caetera (1493), favorecendo Castela. Mas Portugal não aceitou essa divisão. O tratado foi, portanto, uma renegociação secular de uma bênção papal — um acordo entre dois poderes que usavam a cruz tanto como fé quanto como ferramenta de diplomacia.
Mais do que religiosos, esses tratados eram instrumentos de controle global, enraizados na lógica medieval da Cristandade, mas projetados para um mundo que se tornava moderno.
Do Brasil ao Pacífico
O impacto do Tratado de Tordesilhas foi vasto e duradouro:
Brasil: Quando Pedro Álvares Cabral chegou ao litoral brasileiro em 1500, a linha do tratado já havia "legalizado" essa posse. Embora se debata se Portugal já sabia da existência de terras naquela posição, o tratado legitimou o domínio.
África e Ásia: Portugal manteve o controle sobre as rotas marítimas africanas e sobre futuras conquistas na Índia, no Golfo Pérsico e no sudeste asiático.
Pacífico e Américas: A divisão se tornou insustentável à medida que as descobertas aumentavam. Em 1529, o Tratado de Saragoça foi assinado para tentar resolver disputas do lado oposto do globo.
Mas talvez o maior impacto tenha sido simbólico: pela primeira vez, o mundo foi pensado como uma unidade geográfica e política global, algo que poderia ser dividido, governado e explorado.
Filosofia de uma linha imaginária
O Tratado de Tordesilhas é, em essência, um traço — um traço feito por homens, sobre uma Terra que ainda não conheciam, mas que desejavam controlar.
Há algo de profundamente simbólico nessa linha: ela representa a tentativa humana de impor ordem ao caos, de dominar o invisível, de possuir o que ainda não existe. É o gesto prometeico da modernidade nascente: tomar o mundo como projeto, como cálculo, como conquista.
E ao mesmo tempo, é o início de incontáveis silêncios. Povos, línguas, florestas, montanhas e culturas foram ignoradas nesse gesto. O mundo não se dividiu entre Portugal e Espanha — foi redesenhado sem o consentimento de quem já o habitava.
O mundo além das linhas
Hoje, olhamos para o mapa e não vemos mais a linha de Tordesilhas. Mas ela continua, invisível, em heranças linguísticas, em fronteiras culturais, em memórias de colonização e resistência. Portugal e Espanha deixaram línguas irmãs em continentes distintos, e com elas vieram saberes, dores, trocas e reinvenções.
O Tratado de Tordesilhas é mais do que um fato histórico. É um espelho de como o ser humano tenta compreender o mundo através de traços — mapas, tratados, mitos. E também é um lembrete: nem tudo que se divide, separa; nem tudo que se une, liberta.
Curiosidade
Você sabia que a linha passava aproximadamente onde hoje ficam cidades como Belém do Pará e Porto Alegre? Se fosse traçada no Brasil atual, ela cortaria o país ao meio, deixando parte significativa da Amazônia e do sul fora do “Brasil português”.
Referências
Boxer, Charles R. O Império Marítimo Português (1415-1825). Companhia das Letras, 2002.
Russell-Wood, A. J. R. The Portuguese Empire, 1415–1808: A World on the Move. JHU Press, 1998.
Disney, A. R. A History of Portugal and the Portuguese Empire. Cambridge University Press, 2009.
Bethencourt, Francisco. História da Expansão Portuguesa. Círculo de Leitores, 1998.
Oliveira, António de. O Tratado de Tordesilhas e a Divisão do Mundo. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1994.



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