Dia do Soldado no Brasil, entre o guerreiro e o pacificador
- Sidney Klock
- há 6 dias
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Ao amanhecer de 25 de agosto, os quartéis respiram uma memória que não cabe em paradas nem em trompetes. O Dia do Soldado nasceu para recordar um homem e, por meio dele, um ideal, a disciplina que se curva à justiça, a força que serve à paz, a espada que aprende a poupar. Não é um rito vazio no calendário, é um fio que atravessa séculos, unindo tradições antigas e aspirações contemporâneas de um país que se construiu entre coragem e mediação, entre proteção e pacto civilizatório.
Se esta data tem coração, ele pulsa no nome que a gerou, Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, chamado de O Pacificador. Sua biografia é menos o retrato de um herói isolado e mais a metáfora de uma nação que aprendeu a conter incêndios com água e com palavra, que soube vencer batalhas e, quando necessário, dissolver guerras em tratados.

Do nascimento do patrono à instituição da data
Caxias nasceu em 25 de agosto de 1803, em meio a uma linhagem de armas e serviço, neto de militar português, filho de brigadeiro do Exército Imperial. A infância, que cheira a couro de sela e papel de ordens do dia, o conduziu cedo à carreira. Ainda menino, foi declarado cadete, estudou no Seminário São Joaquim, hoje Colégio Pedro II, vizinho ao Campo de Santana, lugar que guardaria a memória de seu nome.
A forja se acendeu na mocidade. Aos quinze anos, ingressou na Academia Real Militar, formou-se tenente, integrou o 1º Batalhão de Fuzileiros. Em 1822, no recém-criado Batalhão do Imperador, recebeu das mãos de Dom Pedro a bandeira do novo Império, gesto que não foi só protocolo, foi transmissão de compromisso, foi altar cívico. No ano seguinte, na campanha baiana, consolidou sua reputação e o título que carregaria com orgulho íntimo, Veterano da Independência.
Entre 1825 e 1828, a Guerra da Cisplatina lhe ofereceu o aprendizado do terreno e da geopolítica platina, mais tarde aplicados com maturidade. No Maranhão, diante da Balaiada, emergiu o estrategista que sabia somar vigor e clemência, energia e negociação, o que lhe rendeu o baronato. No Sul, durante a Revolução Farroupilha, cultivou a pacificação com honra para as partes, horizonte de um Estado que prefere a costura à ruptura, coroado pela Paz de Ponche Verde.
Na Guerra do Paraguai, a experiência atingiu a altura do mito. Já sexagenário, Caxias assumiu um exército combalido e o reergueu com disciplina, logística, sanidade e formação. Evitou o ímpeto cego, escolheu o flanco, abriu caminho pelo Chaco, contornou Humaitá, venceu na Dezembrada. Na hora do pânico, avançou à frente do próprio nome, Sigam-me os que forem brasileiros, e, quando Assunção caiu, o Império lhe deu o título de Duque.
Depois, veio o trabalho da memória. Em 1923, instituiu-se a Festa de Caxias, por Aviso nº 443, com espírito de formatura e reverência. Em 1925, por Aviso nº 336, a homenagem se expandiu, a data deixou de ser apenas de um homem e tornou-se o Dia do Soldado. Em 1962, o Decreto nº 51.429 fixou Caxias como patrono e consolidou o 25 de agosto como rito nacional. Foi a passagem do indivíduo ao arquétipo, do exemplo à instituição.
Quando a guerra pede imagens e versos
Em todas as épocas, a figura do soldado escapou das planilhas e alcançou a arte. A Grécia a cantou com hoplitas, teatro e catarse, Roma a organizou com disciplina e ritos de justiça, alimentando a ideia de guerra justa que atravessaria o medievo. Na Idade Média, a cavalaria sacralizou o guerreiro, investindo-o de tutela dos fracos. No Renascimento, a pólvora redefiniu forças, a teoria encontrou a prática em tratados como A Arte da Guerra, e nasceu o perfil do profissional de armas instruído, disciplinado, técnico.
Com as revoluções oitocentistas, explodiu o conceito de nação em armas, e o Romantismo forneceu a moldura sensível, o soldado já não servia a senhores, servia à pátria imaginada, ao comum que dá sentido ao sacrifício. No Brasil, esta estética repercutiu no século XIX, na poesia de Castro Alves e na pintura de Victor Meirelles, que eternizou cenas da Guerra do Paraguai. Arte e farda se tocaram, não por ornamento, mas por pedagogia, para ensinar valores, para fazer memória.
A heráldica militar é outra gramática dessa pedagogia. O brasão do Exército, com sua espada cercada por lâminas, com elipses de verde e amarelo e o Cruzeiro do Sul, narra virtude, proteção e transcendência, repete na cor e na estrela a promessa de orientação. Símbolos não são adereços, são contratos visuais com a história.
O que aprendemos com Caxias e com a data
Primeiro, aprendemos que liderança é presença. Na Dezembrada, na passagem pelo Chaco, no clamor de Itororó, Caxias não delegou a coragem, repartiu-a. Reformou exércitos, elevou padrões sanitários, ajustou comando e instrução, praticou uma estratégia que preferia a inteligência do terreno à vaidade do choque frontal.
Segundo, aprendemos que pacificação exige técnica e moral. Na Balaiada, a combinação de vigor e conversa, de firmeza e clemência, impediu que a ferida se tornasse gangrena. No Sul, o acordo que encerrou uma década de conflito integrou vencidos e preservou dignidades, mostrou que conciliar pode ser também uma forma de vencer, quando se mira a integridade do corpo político.
Terceiro, aprendemos que a força deve ser serva da paz. O próprio Pacificador, em confidência, chamou a guerra de mal necessário, sempre mal. O soldado ideal, neste espelho, não celebra a violência, disciplina-a, não adora a espada, dá-lhe finalidade justa.
Quarto, aprendemos que datas podem educar. A Festa de Caxias, transformada em Dia do Soldado e fixada por decreto, não foi apenas homenagem de calendário, foi uma pedagogia cívica, um convite anual à cultura de serviço e ao juramento interior de quem guarda, com técnica e virtude, o bem comum.
Onde ética, símbolos e arquivos sustentam a memória
A ética militar brasileira se enraíza em três pilares, o dever, o pundonor e o decoro. É uma ética de virtudes, como queria Aristóteles, coragem, prudência, justiça, temperança, e de lei interior, como pediu Kant, agir por máximas que possam ser universais, reconhecer no outro um fim em si. Esta base filosófica não é abstrata, ela estrutura conduta, treinamento e comando.
A cultura também se guarda em documentos, em mapas, em manuscritos, em jornais. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro preserva o Fundo Duque de Caxias, cartas, avisos, relatórios, peças que permitem ver, sem véus, a tessitura das campanhas e decisões. No Museu Imperial de Petrópolis, um arquivo com mais de sessenta mil documentos ilumina a relação entre poder civil e força armada no oitocentos brasileiro. Na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, os periódicos militares falam do pensamento castrense ao longo de duas centúrias, doutrina, organização, papel social. Memória é matéria prima de futuro.
Por fim, a própria ideia do soldado como arquétipo circula entre mitos e valores, do hoplita cidadão à legião romana preocupada com justiça ritual, do cavaleiro medieval investido de missão protetora ao profissional renascentista, instruído e disciplinado. O Dia do Soldado, no Brasil, condensa esse arco, afirma que técnica e alma precisam andar juntas.
Curiosidade
Entre tantas honras, uma imagem ficou gravada, a de um jovem tenente de vinte anos que conduziu a bandeira brasileira na entrada triunfal em Salvador, em julho de 1823. O gesto parecia simples, atravessar ruas com um estandarte, no entanto, simbolizou a continuidade entre a Independência e a construção paciente do país, um fio de seda verde e ouro costurando guerra, vitória e trabalho cotidiano.
Referências
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Guia de Fundos, Fundo Duque de Caxias.
Museu Imperial de Petrópolis, Arquivo Histórico, acervo da Casa Imperial do Brasil.
Biblioteca Nacional, Hemeroteca Digital Brasileira, Periódicos Militares.
BNDigital, Dossiê Guerra do Paraguai, Duque de Caxias.
Brasiliana Fotográfica, ensaios e documentos iconográficos.
Senado Federal, História militar do Brasil, estudos de referência.
Bibliografia sobre o Romantismo brasileiro e artes visuais, Castro Alves e Victor Meirelles.
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