Nilo Peçanha, oficinas do futuro e a memória de um país em construção
- Sidney Klock
- 21 de ago.
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Há lugares em que a história parece respirar, como se a paisagem escrevesse seus próprios parágrafos. Em Campos dos Goytacazes, onde o Paraíba do Sul desenha linhas de água e a cana-de-açúcar sussurra antigas ambições, nasceu em 2 de outubro de 1867 uma figura destinada a deslocar e abrir horizontes. Nilo Procópio Peçanha, filho do padeiro Sebastião de Sousa Peçanha e de Joaquina Anália de Sá Freire, atravessou uma infância cercada por preconceitos e epítetos que tentaram reduzir sua grandeza à geografia e à cor, ainda assim, dali ergueu uma vida que atravessou a Primeira República como punho, ponte e claridade. A mestiçagem, que tantos quiseram negar, refletia as tensões de um país que saía da escravidão sem cicatrizar suas feridas, e no jovem que chamavam de “o mestiço do Morro do Coco” amadureceu a ousadia de uma modernidade possível.
A travessia de Nilo pela educação traçou um mapa de ascensão intelectual. Do Colégio Pedro II às arcadas do Largo São Francisco, depois aos salões jurídicos do Recife, concluiu o curso de direito em 1887, quando a advocacia era passaporte para o diálogo com os centros decisórios e para a retórica que moldava o ideal republicano.
No plano íntimo, a história teve talhe de romance e ruptura. Em dezembro de 1895, o casamento com Anita, Ana de Castro Belisário de Sousa, neta do Visconde de Santa Rita e bisneta do Barão de Muriaé, afrontou a hierarquia racial e social. Ao escolher Nilo, homem pobre e mulato, Anita escreveu seu nome no sutil livro da resistência, onde o amor recusa a gramática dos privilégios.

Contexto histórico
A formação de Nilo se deu em um tabuleiro de lutas e promessas. Abolicionista e republicano, fundou em 1888 o Clube Republicano de Campos e o Partido Republicano Fluminense, articulando-se com as redes que cercaram a queda da monarquia. Na turbulência do governo Floriano Peixoto, aderiu ao jacobinismo, e ali se revelou o combatente que não recua diante do desenho inacabado de uma nação.
A carreira pública seguiu uma ascensão fulgurante. Aos 23 anos, foi membro da Constituinte de 1890, assinando a primeira Constituição da República, depois deputado federal entre 1891 e 1903, senador e presidente do Estado do Rio de Janeiro entre 1903 e 1906. O “nilismo”, movimento personalista que reorganizou a política fluminense, neutralizou adversários, unificou facções e propôs um estilo pragmático de articulação, menos preso aos velhos clãs rurais e mais atento aos pulsos de um país em transição.
No laboratório das finanças do café, Nilo foi um arquiteto decisivo. Como presidente do Estado do Rio, assinou o Convênio de Taubaté em 26 de fevereiro de 1906, ao lado de Jorge Tibiriçá e Francisco Sales. Acordo de impacto, definiu a política de valorização do café e inaugurou uma forma moderna de intervenção estatal para garantir preços e controlar a oferta, gesto que antecipa mecanismos que o Estado brasileiro adotaria com naturalidade no século XX.
O ápice veio com a morte de Afonso Pena, em 14 de junho de 1909. Nilo assumiu a presidência aos 41 anos, o primeiro e único afrodescendente na história do cargo até então, e conduziu um governo breve porém transformador, que terminaria em 15 de novembro de 1910.
Relevância artística
Há uma dimensão estética e ética na vida de Nilo que toca a história da imagem no Brasil. O branqueamento fotográfico, política invisível de retoques que clareava rostos e apagava pertenças, alcançou seus retratos oficiais, assim como atingiu Machado de Assis e Chiquinha Gonzaga. Não é apenas técnica, é ideologia que insiste no espelho. Ao suavizar traços afrodescendentes, a nação contornava, por artifício, a própria origem. Esta prática escancara como o racismo estrutural forjou a memória visual e, por consequência, a sensibilidade coletiva. Pensar Nilo à luz desse fenômeno é pensar a potência subversiva da imagem que resiste ao apagamento e devolve ao país uma fisionomia mais verdadeira.
Contribuições
A revolução silenciosa da educação profissional
A educação foi o lugar onde Nilo soprou faíscas no futuro. Em 23 de setembro de 1909, o Decreto nº 7.566 criou 19 Escolas de Aprendizes Artífices nas capitais, inauguração do ensino técnico-profissional no Brasil. O texto legal mirou explicitamente “os filhos dos desfavorecidos da fortuna”, para lhes dar “preparo técnico e intelectual” e “hábitos de trabalho profícuo”. Aqui se vislumbra uma filosofia social que, com rara nitidez, percebeu a dignidade do ofício e o valor do saber aplicado.
O próprio Nilo traduz essa concepção com lapidar concisão: “O Brasil de hoje sai das academias. O país do futuro sairá das oficinas”. A frase, mais que profecia, é programa pedagógico. Indica que o progresso, se deseja ser popular, precisa de chaves, ferramentas e laboratórios, precisa de mãos que aprendem, criam e resolvem.
Pioneirismo na política indigenista
Outra pedra de fundação foi o SPILTN, Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais, criado pelo Decreto nº 8.072 em 20 de junho de 1910, entregue ao Marechal Rondon. O lema, “Morrer, se preciso for, matar, nunca”, inscreve uma ética de contenção e respeito em um contexto histórico de secular violência. Com todos os limites do positivismo oficial, a diretriz humanitária inaugurou um marco civilizatório na relação entre Estado e povos originários.
Impacto cultural
O impacto dos gestos de Nilo se amplia quando pensamos sua persistência. O reconhecimento como patrono da educação profissional e tecnológica em 2011 é símbolo de uma semente que vingou. A Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, descendente direta das escolas de 1909, hoje conta com 685 unidades e 11 mil cursos, corações e mãos em oficinas espalhadas pelo território, escritura viva de seu decreto.
No campo indigenista, a linha traçada em 1910 continua a orientar políticas públicas. A Funai, sucessora do Serviço de Proteção aos Índios, guarda a memória desse impulso humanitário que, mesmo sujeito a retrocessos, permanece referência civilizatória na relação entre Estado e povos originários. A história não cessa de interpelar, e é nesse fio que se mede a grandeza de uma ideia.
Para compreender o ambiente político em que Nilo se moveu, convém lembrar a Campanha Civilista de 1910, embate entre Rui Barbosa e Hermes da Fonseca, experiência inaugural de campanha presidencial moderna que rompeu a cartilha do café com leite e introduziu um debate ideológico mais nítido no país. Hermes venceu por margem que expôs fissuras profundas, sinal de que as placas tectônicas do sistema oligárquico já tremiam.
Mais tarde, em 1921, a Reação Republicana, último ato de envergadura nacional na vida política de Nilo, reuniu estados e vozes contra a hegemonia de Minas e São Paulo. A chapa Nilo Peçanha e J. J. Seabra enfrentou Arthur Bernardes, e a denúncia de fraudes, em seguida, alimentou uma crise que desembocaria na agitação tenentista. Mesmo neste terreno, a lição que nos fica não é o cálculo eleitoral, é a tentativa de tensionar e ampliar o espaço do Legislativo, gesto que prenuncia discussões institucionais ainda atuais.
A morte chegou em 31 de março de 1924, no Rio de Janeiro, por insuficiência cardíaca causada pela doença de Chagas. O corpo repousa no São João Batista, mas a obra circula na Rede Federal, nas memórias de uma política indigenista que insistiu no verbo proteger, nos debates sobre o papel do Estado e na imagem, clareada por retoques, que hoje nos convoca a reconstituir a verdade dos traços. O verdadeiro mausoléu, afinal, são as instituições, as ideias e as pessoas transformadas por elas.
Relevância artística, segunda dobra
Voltar à questão do branqueamento fotográfico é insistir na gramática do olhar. O retoque que queria corrigir a cor do país acabou revelando, por contraste, nossa urgência de reconhecer a própria diversidade. Ao iluminar os retratos de Nilo e de outras figuras, a prática mostrou o desejo de uma elite de apagar do espelho aquilo que a incomodava. O gesto artístico de hoje, que recupera arquivos e desvela a intervenção, é também gesto político da memória, uma restauração simbólica que devolve ao rosto da nação sua paleta completa.
Contribuições, terceira dobra
No horizonte da educação, a síntese de Nilo continua a soar como sineta que chama para a aula. “O Brasil de hoje sai das academias. O país do futuro sairá das oficinas.” A frase nos lembra que a teoria carece de chão e que o chão precisa de ciência. Onde quer que exista uma escola técnica pulsando, há um eco dessa convicção.
No horizonte dos povos originários, o lema confiado a Rondon se opõe à retórica da força e propõe uma outra ética do encontro. Em um país de fronteiras móveis e feridas abertas, esse enunciado guarda uma atualidade que nos interroga sobre a função do Estado, sobre os limites do poder e sobre a humanidade como princípio.
Impacto cultural, última dobra
A cultura, quando amadurece, faz das políticas sementes e das instituições sombras frescas. O conjunto das ações de Nilo, da valorização do café ao sistema de ensino técnico, da proteção aos povos indígenas ao rearranjo das forças regionais, compõe um mosaico de modernidade periférica. Não é uma modernidade importada, é uma modernidade negociada, feita de contradições, avanços e hesitações, mas que, ao fim, desenha um país menos excluidor e mais atento às mãos que constroem.
Curiosidade
Há uma melancolia especial em saber que as fotografias oficiais de Nilo foram alteradas para apagar sua negritude, como se o país tivesse tentado retocar o próprio destino. Em um Brasil que embranqueceu retratos de Machado de Assis e de Chiquinha Gonzaga, um presidente afrodescendente não apenas ocupou o Palácio do Catete, também deixou uma arquitetura de transformação na educação e na relação com os povos originários. Talvez a sua maior revolução tenha sido provar que inteligência, visão e grandeza não obedecem a pigmentos, que a memória verdadeira exige coragem para não apagar seus próprios contornos.
Referências
Decreto nº 7.566, de 23 de setembro de 1909, criação das Escolas de Aprendizes Artífices, acervo do MEC e Câmara dos Deputados.Portal MEC e legislação histórica.http, portal.mec.gov.br, decreto_7566_1909.pdf, e www2.camara.leg.br, publicação original.
Serviço de Proteção aos Índios, antecedentes e continuidades, acervos institucionais.Governo Federal, Funai, e entradas de referência sobre o SPI.
Brasiliana Fotográfica, Biblioteca Nacional, dossiês e coleção Nilo Peçanha, arquivos iconográficos.
Atlas Histórico FGV, verbete Reação Republicana, documentação e análises.
SciELO, artigos acadêmicos sobre a Primeira República e memória visual, referências metodológicas.
Planalto, perfis institucionais, vice-presidência e biografia, documentação oficial.
Mapa AN, Dicionário da Primeira República, verbete Escolas de Aprendizes Artífices, sumários históricos.
EPSJV Fiocruz, história da Rede Federal de Educação Profissional, conferências e sínteses.
Senado Federal, reconhecimento de Nilo como patrono da educação profissional e tecnológica, notícias institucionais.
Repositórios acadêmicos FGV e UFV, estudos sobre economia do café e política republicana, análises de contexto.



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