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Joana d’Arc entre a História e a Memória, vozes que rasgam o tempo

  • Foto do escritor: Sidney Klock
    Sidney Klock
  • 26 de ago.
  • 5 min de leitura

Há figuras que atravessam séculos como cometas, deixam rastros e perguntas. Joana d’Arc, a Donzela de Orléans, é uma delas, presença que oscila entre luz e documento, entre fé e aço, entre a palavra do escrivão e o silêncio do inexplicável. Sua história se deita num campo onde a historiografia conversa com o enigma, onde o rigor cede espaço àquilo que resiste a ser calculado, e é nessa fricção que o fascínio se acende.


Joana d’Arc em prado. Bandeira branca, luzes como vozes, coroa distante, chamas em coração. Azul e ouro, gótico.
Arte: SK

O testemunho dos séculos, como nascem as certezas de papel


A vida de Joana é, para muitos estudiosos, a mais documentada de sua época, fruto de dois corpos textuais que sustentam a memória como colunas, o Processo de Condenação de 1431 e o Processo de Reabilitação de 1456, preservados nos arquivos franceses. No século XIX, Jules Quicherat trouxe à luz esses textos latinos, e no século XX a investigação de Régine Pernoud, em diálogo com Marie-Véronique Clin, consolidou sua autenticidade, já que o escrivão não se encontrava sob submissão do tribunal, condição rara e decisiva para a credibilidade do registro.


A espiritualidade do século XV, quando ouvir é crer


No horizonte mental medieval, o sobrenatural não era ruptura, era gramática. Corinne Saunders recorda que o período tomava como certo a possibilidade do espiritual, e a medicina e a psicologia de então ofereciam quadros explicativos para o que hoje chamaríamos de alucinações. Joana dizia ouvir São Miguel, Santa Catarina e Santa Margarida, experiência que a aproxima da tradição de místicas como Hildegarda de Bingen, Juliana de Norwich e Margery Kempe, vozes femininas preservadas como literatura devocional e não como curiosidade marginal.


A França fragmentada, mapa em guerra


A França que viu Joana nascer não era uma unidade sólida. Era tecido de principados que a Guerra dos Cem Anos rasgava com constância. Após Agincourt e a tomada da Normandia, a ocupação inglesa dominava a região setentrional, Paris incluída. O cerco de Orléans era a comporta, se tombasse, a corrente levaria o resto.


Da aldeia à missão, um jardim ao meio-dia


As testemunhas de Domrémy registram uma jovem de gestos comuns, que cuidava de animais, costurava, brincava e rezava. Aos treze anos, no jardim do pai, ao meio-dia de verão, Joana disse ouvir pela primeira vez uma Voz de Deus. Essa primeira audição inaugurou um diálogo cotidiano com santos que lhe apontaram uma tarefa concreta, coroar o Delfim e expulsar os ingleses do reino.

A historiografia recente evita reduzir essa experiência a rótulos patológicos. Ouvir vozes é fenômeno relatado mesmo fora de doença, na população geral. No caso de Joana, o relato sugere vozes que inspiram, orientam e potenciam, não vozes que quebram e desorganizam, e é nessa distinção que parte do enigma se protege do julgamento apressado.


A travessia do gênero, armadura como linguagem


Ao empunhar armas, cortar os cabelos e vestir roupas masculinas, Joana feriu códigos que, na lógica eclesiástica, eram lidos como afronta à ordem divina. O tribunal transformou essa transgressão em acusação, chamando-a ao campo da heresia. A leitura feminista contemporânea, porém, enxerga estratégia, proteção contra violência sexual e legitimidade funcional num ambiente hostil. Foi defesa do corpo e do comando, e foi também gramática de autoridade.


A arte de vencer, pressa que liberta cidades


Poucos meses bastaram para que a camponesa analfabeta se tornasse comando eficaz. Orléans se ergueu do cerco, Patay se decidiu em fuga inglesa, Reims viu a coroa pousar. A tática de Joana, direta e impetuosa, destoou da prudência dos veteranos. A história militar, acostumada a gradientes de aprendizado, quase não encontra lugar para uma curva tão íngreme de intuição e resultado.


O teatro do julgamento, leis, falhas e teologia


Em Rouen, sob Pierre Cauchon, o processo que a condenou colecionou irregularidades. Mais tarde, a Reabilitação elencou motivos de nulidade, de defeito de jurisdição a parcialidade, de falsificação dos atos a erro intolerável na sentença. Num gesto miúdo, porém revelador, Joana recusou recitar publicamente o Pai Nosso, não por ignorância, mas por reconhecer que tal oração pertence ao sacramento da confissão, sacramento que lhe fora negado. Numa só recusa, teologia e consciência.


Memória e uso público, a donzela dos muitos espelhos


Do século XV à contemporaneidade, a lembrança de Joana se tornou campo disputado. Em Domrémy, no século XIX, cresceu um culto de orientação secular, obra do Estado e da municipalidade, enquanto em Orléans prevalecia veneração religiosa desde o século XV. Republicanos, monarquistas, católicos e democratas apropriaram-se de sua imagem, enfatizando, cada qual, a santa, a patriota, a filha do povo. A figura histórica converteu-se em espelho de projetos de identidade.


Joana no cinema, rostos, silêncio e desconstrução


O cinema devolveu o rosto de Joana em três linguagens, a ascese de Dreyer em 1928, o minimalismo de Bresson em 1961, a leitura desconstrutiva de Luc Besson em 1999. Em Dreyer, primeiros planos marcam a santidade como presença visível, quase tátil, como se o cinema moldasse experiência corporal, ideia cara a Antonin Artaud. A tela, então, se torna relíquia, e o olhar, liturgia.


Perspectivas recentes, poder, corpo e crítica ao diagnóstico


A crítica feminista amplia o quadro, lembra que acusações de feitiçaria foram instrumentos de controle social, sobretudo contra mulheres que ocupavam lugares tidos como inadequados. Joana aparece nesse enquadramento como paradigma, alvo conveniente para restaurar hierarquias. Em paralelo, estudos recentes recusam diagnósticos psiquiátricos retrospectivos, lembram que suas visões não autorizam rótulos clínicos, e que insistir nisso pode ser modo de afastar a dimensão extraordinária de sua realização.


Ferro, coração e esporas


Diz a tradição que o coração de Joana não se consumiu no fogo, sinal de santidade que o povo guardou antes da canonização. A espada de Sainte-Catherine-de-Fierbois foi encontrada onde suas vozes indicaram, atrás do altar, com cinco cruzes gravadas na lâmina, ferrugem que cedeu ao pano e ao espanto. Em Patay, a piada das boas esporas, não para fugir, mas para perseguir, sela a intuição estratégica que desarruma o senso comum. Entre lenda e ata, o mistério respira.


Uma estrela que persiste


No cruzamento de documentos, testemunhos e leituras, Joana se torna parábola da capacidade humana de ultrapassar a origem. Da aldeia ao fogo, do jardim ao estandarte, algo nela insiste em dizer que o comum pode, de súbito, tornar-se destino. Por isso perdura, não apenas como santa ou heroína, mas como lembrança de que o extraordinário pode irromper no cotidiano. E talvez, como pressentiu um escritor que a estudou com devoção, sua grandeza resista a qualquer explicação final, convite a admirá-la, a estudá-la e a aceitar o resto como mistério.


Curiosidade


Entre os muitos símbolos que cercam a Donzela, a espada de Fierbois concentra fé e arquivo. Foi buscada exatamente onde Joana indicou, atrás do altar, e trazia cinco cruzes gravadas, detalhe registrado no processo. Uma lâmina, então, atravessa os séculos como se fosse linha, costura um conto de aço entre a nave e o campo de batalha.


Referências


  • Processos de Condenação de 1431 e de Reabilitação de 1456, preservados nos arquivos franceses.

  • Edições e traduções de Jules Quicherat, base para a historiografia posterior.

  • Régine Pernoud e Marie-Véronique Clin, autenticidade dos registros e síntese historiográfica.

  • Corinne Saunders, espiritualidade medieval e experiências visionárias.

  • “Undiagnosing St Joan”, estudo de 2023, crítica à medicalização das visões.

  • Igreja de Sainte-Catherine-de-Fierbois, contexto da espada mencionada nos autos.

  • Filmografia e crítica, Dreyer 1928, Bresson 1961, Luc Besson 1999.

 
 
 

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