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O Dia Nacional do Samba e a travessia que pulsa das antigas rodas africanas ao calendário brasileiro

  • Foto do escritor: Sidney Klock
    Sidney Klock
  • há 4 dias
  • 5 min de leitura

O dia 2 de dezembro surge no calendário brasileiro como uma marca discreta, quase um sussurro que se espalha pelas cidades quando o ano se aproxima do fim. A data não nasceu de épicos fundadores nem de um momento inaugural. Ela brotou do encontro entre um compositor mineiro e a Bahia, entre um gesto legislativo e uma memória que antecede qualquer papel oficial. Antes do decreto, antes da homenagem, existia um tambor que atravessara oceanos e permanecia como marca de sobrevivência.


Roda de samba em ambiente histórico iluminado por luz dourada entrando por janelas altas, músicos tocando tambores e dançarinos em movimento suave sobre um piso de madeira envelhecido, atmosfera clássica com textura painterly e tons sépia.
Arte: SK

O samba como herança que antecede o nome


Muito antes de ganhar forma nas ruas da Praça Onze, o samba já se escondia nos gestos que cruzaram o Atlântico, protegidos pela força silenciosa de quem resistiu. Estudos de linguistas e etnomusicólogos apontam para as línguas bantas, principalmente kimbundu e kikongo, onde a palavra semba nomeava o centro do corpo, a barriga ou o umbigo, território simbólico do convite para entrar na roda. A umbigada carregava um sentido ritualístico, não apenas lúdico, e definia uma genealogia onde corpo e música eram inseparáveis.


Ao longo dos séculos coloniais, enquanto a elite europeia seguia o compasso das polcas e minuetos, os quintais das senzalas guardavam um ritmo que não se deixava apagar. Ali o contratempo sobrevivia à repressão de igrejas e autoridades, encontrando abrigo nos terreiros e nos rituais que preservavam as cosmologias africanas sob o olhar vigilante da ordem colonial. O samba existia antes da palavra samba existir, como se a música aguardasse seu próprio nome surgir no tempo.


Tia Ciata e a geografia secreta da Pequena África


Na virada do século XX, o Rio de Janeiro acolhia uma complexa rede cultural formada por migrantes baianos que transformaram a região da Praça Onze e da Pedra do Sal em território de continuidade africana. Entre essas presenças, a figura de Tia Ciata se ergue como eixo fundamental. Hilária Batista de Almeida mantinha em sua casa uma espécie de diplomacia cultural. Na sala da frente, recebia médicos, políticos, figuras da elite, embalados por choros e modinhas que não despertavam suspeitas. Nos fundos, onde a lei não alcançava com seus olhos mais atentos, o samba se elevava com suas rodas e batuques.


É neste ambiente que surge o marco de 1916, quando a canção “Pelo Telefone”, atribuída a Donga e Mauro de Almeida, é registrada na Biblioteca Nacional. O gesto de registrar uma música nascida de criação coletiva revela tensões entre o modelo ocidental de autoria e a tradição africana de construção comunitária. O samba registrado, assim, foi apenas a superfície de uma prática muito mais antiga, tecida de muitas mãos e vozes.


Da criminalização à transformação em símbolo nacional


No início do século XX, portar um violão em certos bairros do Rio podia significar prisão sob acusação de vadiagem. O Estado observava com desconfiança o universo dos sambistas, cujos corpos, ritmos e trajetórias destoavam do projeto higienista da Primeira República. A música, que nascia da experiência dos morros, era encarada como ameaça.


Com a ascensão de Getúlio Vargas, essa percepção muda de direção. O Estado reconhece no samba um poder agregador, capaz de projetar uma imagem de unidade nacional. Esse movimento produz ambiguidades profundas: enquanto o samba ganha salões, rádios e palcos, sua face insubmissa é pressionada a se adequar. O malandro, símbolo da resistência popular, transforma-se em trabalhador disciplinado. O samba deixa de ser caso de polícia para tornar-se instrumento oficial de identidade, aproximando-se das narrativas do nacionalismo estatal.


Nesse contexto, surge a Deixa Falar, considerada a primeira escola de samba, organizada em 1928 no Estácio. Ismael Silva redefine o passo, ajusta o andamento e cria o ritmo que permitiria a cadência dos desfiles. O samba, que nascera no improviso das rodas, passa a marchar com precisão. A descida do morro para a avenida marca um novo capítulo, onde tradição e modernidade se encontram sob novos enquadramentos.


Dia Nacional do Samba


O Dia Nacional do Samba nasce nos anos 1960, no antigo estado da Guanabara, por iniciativa do vereador Luis Monteiro da Costa. A escolha do dia 2 de dezembro não remete a um nascimento, mas a uma chegada. É a data em que Ary Barroso, autor de “Aquarela do Brasil” e “Na Baixa do Sapateiro”, desembarca pela primeira vez na Bahia, estado que celebrava desde muito sua obra. A homenagem reconhecia o elo simbólico entre o Rio e Salvador, e encontrava no compositor branco a possibilidade de projetar o samba para além do Brasil.


A data, no entanto, ecoa um paradoxo. O samba que se institucionaliza é, em muitos sentidos, produto das camadas populares afro-brasileiras, dos terreiros, das ladeiras e dos quintais. A celebração oficial surge como uma ponte entre o reconhecimento e a apropriação, entre a ancestralidade negra e o imaginário nacional que se formava ao redor dela.


Essa tensão permite compreender por que celebrar o samba no último mês do ano parece, de certo modo, natural. Dezembro, com sua luz mais baixa e sua proximidade com os ciclos de encerramento e renovação, guarda algo do caráter espiralar da música. O samba não segue uma narrativa linear. Ele retorna, redobra, se reinventa, mantém o gesto de convite que atravessou o oceano.


Um caminho que ainda se desenha


Do semba angolano aos terreiros do Recôncavo Baiano, das rodas de Tia Ciata ao rádio dos anos 1930, dos desfiles do Estácio ao reconhecimento internacional da UNESCO em 2005, o samba se tornou um dos raros fios capazes de costurar séculos distintos em um único movimento sonoro. Sua força não reside apenas na harmonia, mas na capacidade de sobreviver ao silenciamento e renascer, sem nunca perder o pulso que o originou.


O surdo marca o tempo forte, como se espelhasse a terra, enquanto o tamborim desenha as síncopes, pequenas fugas que lembram que a vida nem sempre acompanha o compasso fixo dos calendários. No dia 2 de dezembro, o país toca esse tempo múltiplo, onde memória e resistência se encontram.

O samba, no fim, não celebra apenas um gênero musical, mas uma civilização que, impedida de falar sua língua e cultuar seus deuses, encontrou no tambor um modo de inscrever sua história no tempo.


Curiosidade


Entre antigos praticantes do jongo e do samba de roda, circulava a ideia de que ninguém aprendia a sambar. Recordava-se. Como se o corpo trouxesse uma memória guardada desde a travessia atlântica, adormecida à espera de um toque que a despertasse.


Referências


  • Muniz Sodré, Samba, o dono do corpo, obras citadas no anexo.

  • Nei Lopes, Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, referência central para etimologias e diásporas.

  • Biblioteca Nacional do Brasil, registro fonográfico de 1916.

  • Arquivos do IPHAN, dossiê sobre o Samba de Roda do Recôncavo Baiano.

  • UNESCO, Patrimônio Imaterial da Humanidade (2005).

  • Periódicos acadêmicos fornecidos no anexo, incluindo SciELO, ANPUH e universidades brasileiras.

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